Alguns se surpreenderam com o resultado das eleições municipais. Na narrativa dos vencedores do pleito, eles propagandeiam que fizeram uma campanha árdua, austera e desacreditada por todos – exceto por um núcleo de entusiastas fervorosos, que supostamente convenceram a cidade de que era hora de se livrar das suas oligarquias. Apesar de essa estória ser uma atraente peça de publicidade para os marqueteiros da renovação, ela omite a complexidade da teia de fatores que determinaram os rumos das eleições de 2020. Mais que isso: ela pretende cravar um marco histórico antecipando seu significado, pressupondo movimentações e camuflando permanências e contradições. Diante disso, este texto quer explicitar uma mitologia autoritária que jaz sob o disfarce de modernidade.
É sabido que, ao fim da Primeira República, em 1930, os políticos daquela República “Velha” foram chamados de “carcomidos” pelos que tomavam o poder [1]. Embora os cenários de 2020 e 1930 e as movimentações subsequentes a eles sejam profundamente diferentes, não escapa à memória o fato de que o discurso moralista contra os “carcomidos” era alardeado no seio de um movimento que juntava não só a ambígua renovação tenentista, mas também dissidências oligárquicas, fundindo o novo e o ancestral para esterilizar a possibilidade de uma revolução digna desse nome.
O(A) leitor(a) deve estar se perguntando o porquê de voltarmos tanto no tempo. O motivo é que, assim como os tenentes pouco tinham de projeto além do anúncio da “novidade”, precisando incorporar as teses do nacionalista e autoritário Alberto Torres [2], os partidários de Luís Eduardo também reproduzem em terras patenses um misto de discursos importados do bolsonarismo e do tacanho neoliberalismo extremista (desculpem o pleonasmo) do partido “Novo” – a legenda abandonada pelo prefeito eleito, que agora abraça o “Podemos”, um partido que é uma espécie de reelaboração envernizada do bizarríssimo PTN, de Jânio Quadros. Por vias diversas, atores políticos do passado e do presente incorrem na mesma máscara: a da novidade.
Agora, porém, não há ”Revolução”. Existe ainda o agravante de que, em vez da defesa de um Estado forte e interventor, como queria Torres, temos diante de nós duas ideologias que se misturam e são especialistas em destruir o Estado, quando se trata de desamparar os trabalhadores, e em parasitá-lo, quando estão em pauta as benesses dele para a classe dominante. Não estou atribuindo o neoliberalismo e o bolsonarismo ao futuro prefeito. Ele próprio os reivindicou, utilizou seus símbolos, suas arquiteturas sociais, discursos e táticas. Pegou carona com o presidente e com o governador, dissimulou o que neles há de mais tosco e aversivo sob o disfarce de um nada convincente (e nada novo) bom-mocismo. A cereja do bolo é fazer parecer que se trata de uma política sem ideologias. Cereja falsa, por definição.
O que esperar dessa mistura corrosiva? O arquivo enviado por Luís Eduardo ao TSE trazia uma proposta de governo lacônica e ambiciosa, com linguagem empresarial, simplória. Naquele documento há muitos desejos, poucas explicações sobre a realização deles e uma farta dose de autoestima disfarçada de humildade. A ideia, aparentemente, foi traduzir para o âmbito municipal a “racionalização” neoliberal, aparentando a proposta de uma gestão que focaria em otimizar serviços. Ao mesmo tempo, havia o objetivo de reafirmar supostos valores que estariam em “falta” na política, transparecendo um estranho moralismo que, enquanto afirma ser humilde, considera-se o detentor de um “Manual de Fazer Certo”.
Sob esse ponto de vista, as prescrições do Manual imaginário deveriam ser aplicadas a toda a máquina municipal. Essa máquina, então, seria ineficiente, desperdiçadora e, claro, infratora do Manual. Apesar de tudo isso soar como música aos ouvidos de grande parte do eleitorado de Falcão, nós, diametralmente antagônicos no campo ideológico, estamos fartos de saber que há muito o que melhorar nos serviços públicos municipais. Sabemos, porém, que as soluções não virão de nenhum déspota (supostamente) esclarecido com ares fantasmagóricos de um “homem virtuoso” proveniente do setor privado. Em vez de procurar as resoluções no polido autoritarismo tecnocrático, o povo de Patos precisa construí-las com atenção para as considerações dos próprios funcionários públicos e para demandas dos(as) trabalhadores(as).
É necessária muita fé cega para ter grandes expectativas sobre um político que recebeu financiamento (10 mil reais, conforme o DivulgaCandContas, acessado em 05 dez. 2020) até de Salim Mattar Jr. , o ex-secretário de “desestatização” do governo Bolsonaro que (não faz muito tempo) queria vender mais de 1 trilhão de reais em participações em estatais e acabou deixando o governo por um misto de desconhecimento e incompetência para fazer desserviços ao país.
Aliás, falando em campanha, a de Luís Eduardo não foi tão barata quanto alguns gostam de fazer parecer. Gastou mais de 296 mil reais – mais até que o Arnaldo, que ele tanto criticou indiretamente. (Importante lembrar que a prestação final de contas ao TSE pode ocorrer até 15/12/2020, ou seja, pode ser que haja alterações). O financiamento coletivo representou apenas 3,01% das receitas. Outro aspecto interessante é que os dez maiores doadores individuais (em geral, empresários e fazendeiros) tiveram uma média, por doação, de mais de 20 mil reais.
O(A) leitor(a) pode tirar as suas próprias conclusões quanto aos interesses de que classe social o prefeito provavelmente procurará atender em sua gestão.
Pode até ser (e seria bom) que essa gestão venha a efetivar mudanças administrativas benéficas, que ampliem e melhorem os serviços públicos. Mas isso seria exceção, ponto totalmente fora da curva, se se considerar o histórico de outros políticos neoliberais, cujas práticas tendem ao inverso, isto é, a desestruturar os meios de atuação governamental. Outro ponto é que, já que Luís Eduardo se espelha em Jair Messias, como ficou evidente na campanha, não há bons prenúncios de que venha a ocorrer em Patos uma reforma que trate de maneira adequada a necessidade de aprimorar o serviço público. Muito pelo contrário.
No mais, se houve surpresa com as proporções da vitória eleitoral de Falcão, não foi simplesmente pela arrogância dos grupos políticos antes dominantes, que julgavam ainda ter hegemonia há alguns meses, mas pela visceral similaridade entre os projetos das três candidaturas mais votadas.
O processo eleitoral acabou. Até Falcão, fazendo o contrário do que fez seu tão imitado Presidente da República, reconheceu a necessidade de frear os ímpetos eleitoreiros (manipular certos fanáticos bolsonaristas é um jogo perigoso). Mas isso é só discurso. E nossa campanha não é eleitoral. Além disso, é preciso retirar véus e explicitar a velha mistificação ideológica que é a venda da ideia de “renovação”.
NOTAS
[1] A “Revolução de 1930” foi um movimento armado que reuniu civis e militares, organizando-se com dissidentes do Exército, forças públicas dos estados e tropas privadas para depor o presidente Washinton Luís após a derrota da Aliança Liberal (Vargas) nas eleições presidenciais daquele ano. Vale notar que a coalizão do movimento era ampla e, apesar de trazer um otimismo reformista de líderes políticos mais jovens e dos tenentes, também abrigava os interesses de velhas figuras como Antônio Carlos de Andrada (cuja ancestralidade política e familiar remonta aos tempos de Brasil Império). A profunda diferença na comparação entre 2020 e 1930 é logo percebida se lembrarmos, por exemplo, que a Aliança Liberal defendia (ainda que de maneira autoritária) o fortalecimento do Estado para organizar a industrialização e o estabelecimento de direitos trabalhistas, coisas que estão fora das aspirações políticas dos vitoriosos nas eleições patenses deste ano.
[2] Alberto Torres foi um intelectual republicano no Império e na República. Já havia sido Ministro do Interior e Ministro do Supremo Tribunal Federal, mas acabou se desiludindo com a elite oligárquica e teve suas ideias políticas adotadas pelos militares. Nessas ideias havia a defesa de um Estado forte, centralizado e interventor.