Os 80 anos da guerra e revolução na Espanha: um olhar sobre as comemorações no Brasil (2016)

Em memória do 19 julho de 1936, data que marca o início da guerra e revolução espanhola, publicamos a versão em português do texto de Thiago Lemos Silva, originalmente publicado em espanhol no jornal Tierra y Libertad, de Madrid. No texto, o autor reflete sobre as várias comemorações que ocorreram em nosso país, no ano de 2016, em virtude do octogésimo aniversário desse importante acontecimento histórico. Nesse sentido, ele traz elementos significativos para pensarmos os motivos que historicamente mantiveram unidos anarquistas de um lado e outro do Atlântico.

Por Thiago Lemos Silva

Pouco depois da queda de Madrid,  último baluarte da resistência antifascista, Lucía Sánchez Saornil escreveu o breve, porém intenso,  ensaio “Indomables” para o Semanário de SIA, órgão periódico do Comitê de Solidaridad Internacional Antifascista, então  publicado em Paris, na França,   para onde a anarquista foi em busca de exílio após a vitória de Franco. Nele afirma que:

“O antifascismo espanhol sente a dignidade de sua missão; sabe que realizou uma obra; que escreveu na história, para exemplo do mundo, uma página cuja profunda e luminosa marca os imundos cuspes da chusma fascista não podem apagar”.[1]

Muito mais do que um balanço técnico sobre as causas que geraram a derrota para o fascismo internacional durante a guerra civil, “Indomables” é, em certo sentido, um elogio apaixonado da luta revolucionária dos trabalhadores e trabalhadoras espanhóis pela sua emancipação. Não por acaso, Lucía diz nele que a derrota material da guerra estaria em um nível ético infinitamente inferior à vitória simbólica que obtiveram com a revolução. Isso constituiria segundo a autora o seu maior legado, cuja marca luminosa os fascistas nunca poderiam apagar da história.

Iniciar este artigo evocando Lucía Sánchez Saornil não constitui mera casualidade. Sua biografia condensa de modo emblemático como a luminosa marca deixada pelo proletariado espanhol quase desapareceu nos tempos sombrios do franquismo. Assim como ela, Amparo Poch y Gascón, Cipriano Mera, Lola Iturbe, Diego Abad de Santillán e um grande etecetera de anarquistas, anônimos e ilustres, foram mais que exilados de seu próprio país; foram exilados de sua própria história. 

Embora nesses tempos sombrios, que sobrevieram após 1939 e que perduraram até 1975, tivessem sido feitos inúmeros esforços para apagar o legado da revolução, sua luminosa marca nunca deixou de brilhar. É bem verdade que seu brilho não teve, desde então, a mesma força e esplendor que naquele ano de 1936. Mas, mesmo que modo fraco, ela se manteve irradiante no tempo e espaço até chegar em 2016, ano no qual anarquistas de diversas partes do globo organizaram atividades públicas com o objetivo de rememorar o octogésimo aniversário da guerra e revolução na Espanha.

Comungando, em larga medida, desse pensamento e/ou sensibilidade internacionalista, grupos anarquistas no Brasil propuseram um sem fim de atividades, que foram desde lançamentos de livros até organização de palestras, passando pela exibição de mostras cinematográficas e edição de dossiês temáticos em revistas especializadas. A efusão que caracterizou essas atividades, que pulularam de uma ponta a outra no país, nos leva a destacar a singularidade da relação que os e as militantes anarquistas que aqui vivem possuem com a memória da guerra e da revolução espanhola.

Apesar da massiva imigração espanhola para América Latina, fato não desprezível no que se refere à formação da classe operária, na fundação das primeiras ligas de resistência e no processo de difusão da ideologia anarquista na virada do século XIX para o século XX, é interessante sublinhar o peso desigual que a guerra e a revolução na Espanha tiveram deste lado do Atlântico. Enquanto na Argentina, no Uruguai e no Chile, o movimento anarquista montou uma densa rede de comitês de apoio, enviou voluntários e fundou periódicos para informar minuciosamente os rumos da guerra e revolução, no Brasil o movimento anarquista deu um apoio bem mais tímido, e com pouca organicidade.

Essas diferenças se devem ao fato de que os efeitos da repressão, a emergência de regimes autoritários e a disputa com os partidos comunistas pela hegemonia do movimento operário foram sentidos bem mais cedo pelo movimento anarquista brasileiro do que pelos seus congêneres latino-americanos. Isso explica, ao menos em parte, porque a memória da guerra e revolução espanhola foi mais significativa para o movimento anarquista argentino, chileno e uruguaio do que para o brasileiro na década de 1940 em diante. Enquanto lá foi possível preservar e transmitir esse legado, dada a presença de uma tradição já consolidada, por aqui não.

Interessante notar que, 80 anos depois, esse quadro, se não foi invertido, ao menos se alterou consideravelmente. Isso pode ser evidenciado de modo abundante na quantidade e qualidade de atividades  realizadas no Brasil, de norte a sul, de leste a oeste. O objetivo delas foi apresentar, refletir e debater sobre aquilo que seria, tomando de empréstimo a feliz expressão de Hannah Arendt, “o tesouro perdido da tradição revolucionária”[2] do anarquismo espanhol. Durante todo o ano de 2016, foram mobilizados vários esforços neste sentido, que resultaram, como já dito, em  lançamentos de livros, organização de palestras, exibição de mostras cinematográficas e edição de dossiês temáticos. Nas linhas que seguem abaixo, resenho, ainda que brevemente, algumas dessas atividades.

Primeiramente, destaco o lançamento do livro “A questão feminina em nossos meios”, uma compilação de artigos de Lucía Sánchez Saornil, que foram originalmente publicados na imprensa anarquista e anarcossindicalista espanhola e que constituem o essencial da “dupla luta” de Mujeres Libres em prol de sua emancipação de classe e gênero antes e durante dos eventos revolucionários na Espanha. Resultado de uma coedição da Biblioteca Terra Livre[3], de São Paulo/Brasil, e da Editorial Eleuterio, de Santiago/Chile, esse livro foi apresentado em duas  cidades do estado de Minas Gerais, naquele ano. Com um amplo público presente nas cidades Patos de Minas e Uberaba, as atividades despertaram um vivo interesse sobre o tema, principalmente entre as mulheres .

Outras atividades dignas de notas foram as mostras cinematográficas realizadas em Santos/São Paulo, pelo Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri; em Uberaba/Minas Gerais, pelo Círculo de Estudos Libertários; em Belo Horizonte/Minas Gerais, pelo Instituto de Direitos Humanos Helena Greco ; em Florianópolis/Santa Catarina, pela Livraria 36 e em São Paulo/São Paulo, pela Biblioteca Terra Livre. Através da exibição de filmes como “Ay Carmela”, “Vivir la Utopia”, “Tierra y Libertad”, “Indomables: una historia de Mujeres Libres” e “La lengua de las mariposas”. Essas mostras estabeleceram um instigante debate sobre as coletividades agrárias e rurais, o protagonismo feminino, a luta das milícias, a pedagogia libertária, dentre outros temas.

As conferências, simpósios e debates são outras atividades que merecem ser registradas. São elas: “80 anos da Revolução Espanhola”, organizado pela Federação Anarquista Gaúcha, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; “Revolução Espanhola- 80 anos: Lições para o presente”, promovido pela Federação Anarquista do Rio de Janeiro, em Goytacazez, no Rio de Janeiro e por fim a Jornada Libertária de debates e ação direta com a temática “80 anos da revolução espanhola – legados e resistências“, organizado Organização de Base  e da Federação Anarquista Cabana, em Macapá, no estado do Amapá. Como o título das atividades sugere, o seu propósito foi entender de que forma o legado deixado pelos anarquistas espanhóis, pode ser aplicável à atuação política dos anarquistas junto aos movimentos sociais nos dias atuais.

Por fim, evoco dois dossiês temáticos, que, misturando textos clássicos e contemporâneos, trazem uma amostra representativa dos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais da guerra e revolução. O primeiro foi organizado pelo Núcleo de Sociabilidade Libertária, de São Paulo, e publicado no número 29 da Revista Verve. Nele nos deparamos com os artigos “A epopeia anarquista”, de Jaime Cubero; “Viver a utopia: 80 anos da Revolução Espanhola”, de Rafael Cid; “Não temer a ruína: a atualidade da Revolução Espanhola como prática libertária”, de Acácio Augusto e por fim o poema “La insignia” de Léon Felipe. O segundo foi organizado pela Biblioteca Terra Livre da mesma cidade, na sua revista homônima de número 4. Nas suas páginas, nos deparamos com os artigos “Mais vale um anarquista do que um capitão!”, de Ramón Casals; “A coletivização na Espanha” de Augustin Souchy; “O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola 1936-1939” de Frank Mintz; “Carta aberta à companheira Federica Montseny” de Camillo Berneri; “80 Aniversário da Revolução: Mujeres Libres” de Laura Vicente e “Ferrer na Revolução Espanhola” de Rodrigo Rosa.

Em meio a esse frenesi comemorativo, tanto no Brasil quanto fora dele, Juan Felipe, diretor do aclamado documentário “Indomables: una historia de Mujeres Libres”, escreveu o seguinte comentário desde seu perfil em uma rede social: “ Vejam se  de tanto lembrar da revolução libertária não vão esquecer que temos que fazê-la”[4]. O comentário provocador, em vários aspectos, retoma e reatualiza a espinhosa problemática da relação entre memória e esquecimento, bem como a necessidade de se estabelecer entre ambos um equilíbrio dinâmico.

Dito de outro modo, a revolução libertária passada não deve ser tomada como um modelo, em relação ao qual a revolução libertária futura será uma cópia. Ela deve ser, como diria Cornelius Castoriadis, “um índice de possibilidades realizadas”[5]. Nesse sentido, a homenagem que prestamos à memória dos e das anarquistas que nos antecederam na luta supõe, em alguma medida, esquecê-la. Essa é uma condição básica para que possamos recriá-la e ressignificá-la a partir dos desafios de nosso tempo presente.


[1] SAORNIL,Lucía Sánchez. Indomables. SIA, Paris, 09/03/1939, tradução do autor.

[2] ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das  Letras. 2011, p.274.

[3] Depois da publicação deste artigo, a Biblioteca Terra Livre lançou a reedição de dois  livros “ A Tragédia da Espanha”, de Rudolf  Rocker, e a “Mujeres Libres da Espanha:documentos da Revolução Espanhola” de Margareth Rago e Maria Clara Pivato Biajoli.

[4]FELIPE, Juan.[Comentário pessoal]. Facebook. 19 julho 2016. Disponivel em: https://www.facebook.com/malatestaren.malko?fref=ts . Acesso em: 14/08/2016, tradução do autor.

[5]CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do pensável: as encruzilhadas do labirinto (vol. VI). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 195.

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