Antes de começar o meu desabafo com o leitor do Patos à Esquerda, gostaria de deixar claro que este é apenas um texto de opinião sobre uma fragilidade nossa, que percebo pipocar vez ou outra nas rodas de fofocas físicas e virtuais neste mundão afora. Esse texto é sobre nós que embalamos na dança do micropoder, que parece não garantir nada além de ruir as bases que sustentam a união da nossa classe. “O tal do micropoder que sobe às nossas cabeças” parece se comunicar com a clássica citação de Paulo Freire, da relação entre o oprimido e o opressor, que todo professor do nosso campo político a proferiu em algum momento da vida (nem que fosse pra si mesmo, de frente para um espelho). E, por micropoder, deixarei claro aqui que estou falando das relações entre as forças de militância, da ocupação de espaços políticos de um pequeno município, das universidades, da segurança pública e, como não poderia ser diferente, do cotidiano na relação trabalhador e patrão.
Quem nunca viu um “patrão” se sentir o dono da vida de seus funcionários? Ditar horários malucos de trabalho e elaborar regras de conduta abusivas, fazendo do pagamento do salário uma verdadeira incógnita digna do experimento do Gato de Schrödinger. Aqui, numa brincadeira com um experimento da física, o salário parece existir e não existir ao mesmo tempo, dependendo da intervenção de um “observador” – e, nesse caso, o observador seria o… Ministério do Trabalho?
Todo mundo quer ser um chefe, ou ter os privilégios de um chefe. E, parece que quanto mais se definem títulos e termos para dizer que “um manda mais que o outro” em uma instituição, mais o enobrecimento nichado aparece como justificativa para atitudes tóxicas. Algo como nos episódios de The Office, quando o Dwight Schrute insistia em criar para si o título de “Assistente do gerente regional” da filial de Dunder Mifflin localizada na cidadezinha interiorana de Scranton, quando na verdade era só um vendedor de papel. Fazia, assim, sentido para ele se portar com arrogância frente aos colegas vendedores de papel, enquanto o próprio gerente regional, Michael Scott, tinha pouca ou nenhuma importância para a semi-falida empresa.
O monstro do micropoder não para por aí. Quantas patentes o exército tem? Quantos níveis existem na hierarquia da segurança pública e da defensoria civil e militar? O micropoder que separa o soldado do sargento lhes dá direito aos jargões, à prepotência, aos formalismos, à permissão para agir violentamente entre eles e com os outros. Aqueles que conseguiram ver Tropa de Elite, para além da romantização das fardas de caveira, da trilha sonora top e da brutalidade, conseguiram perceber essa sutil crítica ao micropoder. No segundo filme, não bastou a patente do capitão Mathias para manter sua postura de autoridade, sendo que algo maior e mais poderoso claramente financiou a sua morte – ali o micropoder falhou, ficou pequeníssimo, bem micro mesmo!
Na universidade também tem micropoder. Como aluno de universidade já experienciei a minha cota de assédio moral dos professores que achavam que devíamos seguir condutas formais, extinguindo nossas identidades e práticas políticas, pelo bem das nossas carreiras acadêmicas. Tive amigos e colegas que tinham, além das horas em sala de aula, que realizar bicos e trabalhar para os manter na universidade. A mesma que parecia querer lhes expelir a qualquer momento. Havia algo ali que sussurrava que “não se pode dar o direito à ciência e à educação de qualidade a quem tem uma vida para além dos muros da academia”. À essa classe que acha que concentra o poder das universidades nas mãos dão-lhes o título de cátedra. Seus integrantes são postos nos mais altos degraus do olimpo do conhecimento, são “eles que ditam” quem pode ou não acessá-lo. Mesmo que saibamos que há uma estrutura maior que realmente decide quem vence e quem falha nesse ambiente.
Ainda dentro das universidades, ocorrem as disputas pelo movimento estudantil e ocupação dos DCEs para decidir sobre os futuros da universidade. Uma entidade de quase unânime irrelevância para a maioria dos estatutos e regulamentos das universidades do país. Ainda assim, é o único canal que cria uma ponte entre os interesses dos estudantes e a “alta cúpula universitária”. O problema acontece quando a disputa se faz no âmbito do narcisismo das pequenas diferenças: frente aos raios neoliberalizadores e o conservadorismo dos cátedras micropoderosos, as entidades estudantis desvirtuam para a disputa de um mesmo público político pequeno, em prol de uma rixa do século XX – entre Trotskistas, Stalinistas e Leninistas – ou algo mais bobo, como conflitos de personalidades e autopromoção.
Realizar o exercício de escutar os lamentos dos nossos, vez sim e vez outra também, nos dá um conjunto de informações que compilam para uma mesma experiência: de que há alguém, que está um pouco acima de nós, ou que tem mais propriedade intelectual e/ou material que nós, mas que a sua própria posição hierárquica na sociedade constrói em seu imaginário um sentimento superlativo. Isto é, uma grandeza falsa de poder. Como se, o título de patrão, de chefe de departamento, de cátedra, de agente da segurança pública, ou de líder político lhes fossem a garantia de paz em não precisar mais estar na fila para roer o osso – ledo engano!
O grande problema é que falta método prático para fazê-los enxergar o resto do mundo e o quão descartáveis e pouco importantes para a máquina esses micropoderosos são. Que são coisificados, que têm seus momentos de vida extorquidos e que os seus salários, que lhes parecem tão imponentes, são na verdade, merrecas perto de quem financia a suas próprias mortes em vida. Tenho a impressão de que somos colocados o tempo inteiro em rinhas ilegais de galo. E, como esses galos, não vemos nada além da necessidade de escangalhar outros galos iguais a nós, ao invés de nos unir, bicar e arrancar os olhos dos apostadores que financiam nossos cercadinhos. Tudo em nome de uma máquina que só permanece funcionando, porque tem a nossa gente almejando o próprio acúmulo individual de micropoder.