A seguir publicamos um artigo de Alexandra Kollontai sobre as contribuições que a Revolução Russa, ocorrida outubro de 1917, deu para pensar a emancipação feminina. O artigo foi originalmente publicado no jornal russo Chama, em 09 de outubro de 1927, e posteriormente republicado na coletânea A Revolução das Mulheres, da Boitempo, em 2017. A tradução é de Thaiz Carvalho Senna e Ekaterina Volkova Américo.
Por Alexandra Kollontai
Todos sabem, de maneira clara e indubitável, o quanto Outubro deu às mulheres trabalhadoras em relação à sua emancipação. No entanto, como o Grande Outubro impactou na questão da liberdade das mulheres nos países burgueses? Como ele contribuiu para a criação do tipo da “nova mulher”, relacionado às tarefas e aspirações da classe trabalhadora?
A [Primeira] Guerra Mundial, que na Europa e na América do Norte atraiu massas colossais de mulheres das camadas mais necessitadas da população para o círculo de produção e de administração pública, obviamente impulsionou a causa da emancipação da mulher. O rápido crescimento do trabalho feminino resultou em mudanças profundas e inéditas no cotidiano da família e no modo de vida geral das mulheres nos países burgueses. Entretanto, dificilmente o processo de emancipação feminina teria ido além disso caso Outubro não tivesse dado a última palavra. Outubro ajudou a estabelecer uma nova concepção de mulher, ao assegurar e revelar a imagem da mulher como unidade de trabalho socialmente útil. Desde os primeiros passos da Revolução de Outubro, ficou claro que a força e a energia das mulheres são necessárias não apenas para o marido e para a família, como se acreditava há milhares de anos, mas para a sociedade, para a coletividade social, para o Estado.
Não obstante, a burguesia não pode e não quer reconhecer esse fenômenos como um feito histórico inevitável, nem entender que a formação de um novo tipo de mulher está relacionada com a mudança geral, rumo à criação de uma nova sociedade trabalhadora. Não fosse Outubro, ainda seria dominante a visão de que a mulher independente é algo temporário e que o lugar das mulheres está na família, à custa do marido, que ganha a vida. Outubro mudou diversos conceitos. Essa reviravolta na avaliação das tarefas e do destino das mulheres na União Soviética impactou também no modo como elas são tratadas muito além dos limites do país. Hoje encontramos a nova mulher em todos os cantos do globo terrestre. A nova mulher é um fenômeno de massas. Talvez apenas os países semi-coloniais e coloniais, onde o desenvolvimento das forças produtivas está atrasado em razão do domínio predatório imperialista, ainda sejam uma exceção. Não se pode levar adiante a luta de classes e grupos sociais sem a contribuição das mulheres.
A nova mulher é, antes de tudo, uma unidade independente de trabalho, cuja colaboração não se estende às necessidades particulares de uma família, mas ao trabalho socialmente útil e necessário. Ela está se livrando daqueles traços morais interiores que definem a mulher do passado. A mesquinhez feminina, o conservadorismo e a estreiteza de conceitos, a inveja, a malícia em relação a outras mulheres, vistas como rivais na caça ao chefe de família: todas essas características já não são mais necessárias no contexto atual, em que ocorre a luta das mulheres pela existência. Desde o momento em que a mulher começa a viver do seu trabalho, ela precisa desenvolver outras qualidades e adquirir novas habilidades. Milhões de mulheres trabalhadoras do mundo se apressam em busca de uma transformação moral.
É interessante observar como não só em nosso país, mas também no exterior, a mulher aprende a ser uma trabalhadora produtiva e essencial. Ela está perfeitamente consciente de que seu bem-estar e muitas vezes a existência de seus filhos dependem diretamente dela mesma, do seu trabalho e das suas habilidades. Ela se adapta externa e internamente às novas condições de vida. Na esfera psicológica, ela deixa de ser aquela criatura paciente e submissa que dava tudo de si para o marido e a família. Hoje, as mulheres não tem tempo para serem “sentimentais”, muito menos “submissas” e pacientes. Para elas, é mais importante confiar na sua força, ser firme no trabalho, não se distrair dele por causa das emoções.
Além do compromisso com o trabalho e do empenho em elevar o seu valor no mercado profissional por meio de qualificações e da preocupação com sua saúde e força física, a nova mulher trabalhadora ainda difere das mulheres anteriores no sentido de que expressa claramente os sentimentos e a consciência da ligação com sua classe, com o coletivo. A mulher participa da política. Repito, mesmo que a guerra tenha atraído grandes massas de mulheres para a luta política, somente a Revolução de Outubro admitiu publicamente, por meio de leis e do novo sistema soviético, que a mulher é uma trabalhadora da sociedade e que deve ser reconhecida como um cidadão ativo. A grande mudança na posição feminina na União Soviética gerou um impulso na consolidação das mulheres na luta entre os grupos sociais. A mulher também foi necessária nessa luta. Em todos os lugares, em todos os países, a atividade política delas tem aumentado ao longo dos últimos dez anos em dimensões sem precedentes. As mulheres tornam-se membros de governos (na Dinamarca, Nina Bang é a ministra da Educação; na Inglaterra, Margaret Bondfield compõe o gabinete de [Ramsay] McDonald), entram no corpo diplomático, estão entre os idealizadores dos grandes movimentos revolucionários, como Sun Tsin-lin (esposa de Sun Yat-sen). Elas estão cada vez mais acostumadas a administrar departamentos (ou, como os chamamos na União Soviética, seções), liderar organizações comerciais e orientar a política.
Seria isso possível sem o Grande Outubro? Poderia ter surgido uma nova mulher-cidadã e trabalhadora socialmente útil caso o grande turbilhão não tivesse passado pelo planeta? Se não fosse Outubro, teria sido possível às mulheres trabalhadoras de outros países darem passos tão largos rumo à própria emancipação? Qualquer ser pensante sabe que a resposta é não. É por isso que todas as mulheres trabalhadoras sentem que o décimo aniversário do Outubro é a maior festa dos proletários do mundo.
Outubro afirmou a importância das mulheres trabalhadoras. Outubro criou as condições em que a “nova mulher” triunfará.