Janeiro tem nos mostrado didaticamente os reais eixos de gravidade do jogo político no Brasil. Neste mês, experimentamos coletivamente afetos diametralmente opostos, que se impõem sobre a suposta racionalidade da política liberal.
Primeiro, viveu-se a alegria da posse de Lula, repleta de simbolismo e de uma historicidade peculiares, uma vez que se põe em cena a multiplicidade da classe trabalhadora em contraposição à unicidade do “brasileiro médio” para o qual supostamente o bolsonarismo falava – sendo este nada mais do que uma invencionice abstrata. Dias depois, em 8 de janeiro, assistimos a uma ofensiva grave e fracassada da direita. O que esse cenário de perspectivas não lineares nos evidencia?
É notório que o empossamento de Lula e seu governo mudam os condicionantes da ação política das esquerdas e a interpretação hegemônica dos acontecimentos. Saímos de uma conjuntura em que o horizonte de expectativas era reduzir danos e entramos em outra, na qual nossa pressão precisa impulsionar o governo à esquerda.
Eis aí um nó que diferencia os movimentos populares e a esquerda anticapitalista da esquerda liberal. Somos partidários da interpretação de que não, não se deve confiar no governo, pois confiança, no caso, significa inércia.
Veremos, nos próximos tempos, parte significativa da imprensa, inclusive a social-democrata, limitando-se a relatar as instituições funcionando com um mínimo de normalidade (por exemplo, louvando os feitos obrigatórios e um tanto tardios do “Xandão” – alter ego de Alexandre de Moraes que sinaliza o enfraquecimento do Executivo) e contemplar o gênio supostamente estrategista de Lula. Vimos uma mostra dessa contemplação quando Lula escolheu José Múcio para chefiar o Ministério da Defesa.
A escolha, sabidamente decisiva para a sobrevivência do governo, especialmente depois de uma ocupação militar do Estado durante o governo Bolsonaro, foi interpretada como uma jogada de mestre. Múcio, que não é militar, sinalizaria, em tese, algum grau de autoridade civil, bem como agradaria os setores insubmissos das casernas. Tanto que chegou a ser elogiado por Hamilton Mourão, cúmplice de Bolsonaro e símbolo da supremacia militar sobre Estado. Apesar da expectativa, Múcio vinha sendo um notório omisso na resposta aos eventos de 8 de janeiro. Não só intercedeu pelos bolsonaristas golpistas acampados em portas de quartéis (o ministro chegou a dizer que tinha parentes nessa condição) como também demorou muito a dar qualquer demonstração da suposta autoridade civil.
Múcio só agiu depois de reunião com Lula, neste dia 21, quando provavelmente deve ter sido discutido o absurdo papel das Forças Armadas na viabilização dos atentados de 8 de janeiro. Houve, finalmente, a troca do comandante do Exército, que agora é Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Apesar do discurso legalista, supervalorizado nos últimos dias, em um Exército cuja normalidade parece ser a delinquência, Tomás também não deve ser tido como salvaguarda de nada, uma vez que é proveniente de um Exército estruturado em torno da Anistia e ancorado na subserviência aos interesses burgueses nacionais e estadunidenses. Entretanto, ainda que quase perdendo a chance, Lula parece finalmente ter aceitado que o 08/01 deu a seu governo uma oportunidade passageira e única de faxinar as Forças Armadas com algum grau de base política, social e midiática em seu favor. Vale notar, nesse sentido, as corretíssimas dispensas que promoveu no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão que ou dormiu no ponto ou foi visceralmente conivente com os ocorridos e artífice deles.
Mas se engana quem pensar que Lula demonstra, assim, ser um gênio da estratégia. Reconheço a genialidade de Lula, mas sobretudo como a de um gênio da tática. Não é trabalhoso notar que, em todas as ações anunciadas com maior ênfase pelo governo, não entram em cena ou em perspectiva os condicionantes estruturais da crise de cujo estrangulamento se tem agora uma aparente trégua.
A saber, refiro-me a condicionantes como a dependência e o subdesenvolvimento, a ausência de soberania e autoridade populares, a supremacia do agronegócio/latifúndio e a ausência de participação popular massiva.
Em outras palavras: as manobras e piruetas políticas do governo carecem de coesão estratégica, de sorte que, aparentemente, ele não quer pautar o debate de forma agressiva nem tocar nas velhas feridas abertas do país (note-se, porém, que, obviamente, Lula tem feito muito bem em se concentrar na ferida da fome, por exemplo). No limite, a atuação de militantes populares, se restrita à mera defesa do governo Lula, será fadada a assistir sucessivas e contumazes ofensivas da direita golpista, bem como o estreitamento do espaço para manobras táticas do PT e de seus aliados.
Levando essa lógica ao extremo, chegaríamos novamente à situação de vermos um presidente de centro-esquerda ter que escolher entre se vergar ou ser quebrado. Voltamos, assim, à fórmula expressa por Perry Anderson ao comentar a obra de André Singer: “O segundo erro atribuído a Dilma foi rejeitar o acordo com Cunha para se salvar do impeachment, algo que Lula acreditava ser necessário e buscou concretizar. Para Singer, aí reside uma diferença fundamental de personalidade. Politicamente, Lula verga, mas não quebra; já Dilma quebra, mas não verga. Os chantagistas, disse ela, nunca se satisfazem: quem cede a chantagista uma vez acaba tendo que ceder sempre.”2(ANDERSON, Perry. Brasil à parte: 1964-2019. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 134.) Anderson anota que, para Singer, o primeiro erro de Dilma foi concorrer à reeleição.
O fatalismo triste dessa situação é que ela é resultado da aplicação continuada da ideia de que o que se pode fazer de melhor no Brasil é empoderar alguém que jogue o jogo da burguesia melhor que ela e (importante) sem direito de errar.
Constatando o desgaste e o fracasso dessa concepção, hoje, Lula, que “vergou sem quebrar”, pede que as pessoas cobrem de seu governo. Por sua vez, Dilma, que “quebrou sem vergar”, diz que democracia, sem organização popular, não se sustenta. Ainda assim, não há convocação do povo para a disputa política.
Disso se segue que o espírito conciliatório (hoje dominante) não consegue mobilizar importantes afetos da classe trabalhadora, como o ódio à burguesia e a Bolsonaro, o desejo de vingança, o impulso para a construção de algo inédito. Ele abre mão desses afetos em favor de uma pequena política: fria, supostamente racional, supostamente pragmática – e, obviamente, míope. A condição para que essa política sem os afetos populares seja bem-sucedida é uma despolitização mansa e pacífica por parte do povo. Hoje, porém, a despolitização é agitadora, abrangente e belicosa por parte da direita.
É por isso que existe uma tendência ao esquecimento (não por acaso, a esquerda clama em suas redes sociais: “sem anistia!”) e uma relutância em mobilizar as pessoas em uma política de pressão de massas que poderia amparar o governo – jogando pelos ares suas dificuldades no ninho de cobras que é o Congresso.
As respostas institucionais ao 8 de janeiro ofuscam propositalmente o caráter longevo e material da crise. Não me entenda mal, leitor(a). Não estou dizendo que o 8 de janeiro não foi grave. Foi gravíssimo. Mas o que não foi, desde 2015, quando Dilma se viu obrigada a nomear o neoliberal Joaquim Levy para a Fazenda?
Diante do ocorrido, vê-se, em um canto da mesa do jogo político, uma esquerda liberal defendendo uma democracia abstrata, e, em outro, uma direita tosca atacando a democracia liberal em defesa de uma liberdade também abstrata. É na conjugação das crises e na saturação das táticas que os interesses estratégicos são desvelados, sendo obrigados a sair daquele terreno pantanoso em que não expressam seus programas reais.
A direita deseja implantar algum regime político cujo horizonte pode ser o terrorismo de Estado (esse, sim, é o “terrorismo” desejado pelos bolsonaristas), mas pode ser um regime liberal burguês ultraconservador e constitucionalizado. É preciso desfazer essa trama com uma alternativa popular, colocando em disputa não só os pontos em que o governo Bolsonaro foi absurdo, mas sobretudo aqueles que absurdamente se normalizaram.
A saber, refiro-me, especialmente, à política macroeconômica liberalóide (em que o governo Lula não sinaliza agressividade, autoridade ou mesmo reformismo) e aos preceitos militares, que, em sua atual situação, são o cadafalso de qualquer presidente. Urge romper com o mito de que se deve meramente empoderar vozes legalistas dentro das Forças Armadas, porque essa ideia está baseada na de que é melhor não politizar elas. Nada mais fantasioso e risível, em um país onde o Exército nasceu a serviço da Monarquia escravocrata esmagando movimentos do povo. As Forças Armadas precisam de reforma e não se trata de algo a ser feito só institucionalmente – é preciso colocar a questão dos quartéis na esfera pública, onde esteja sujeita ao interesse popular.