Livre e transnacional: Ana Piacenza em Rosário – Nita Nahuel em Barcelona

A seguir publicamos um extrato do texto “Em um mundo de mulheres livres: por que não anarquizar o feminismo?” de autoria de Nadia Ledesma Prietto e Gisela Manzoni, que traz à tona a instigante figura da anarquista argentina Ana Pianceza. O referido texto faz parte de um estudo mais amplo escrito pelas autoras para a edição publicada por Cúlmine do livro Mujeres Libres: el anarquismo por la lucha de la emancipación de mujeres, de Martha Ackelsberg. O texto na íntegra estará disponível em breve no site da Redemoinho Traduções. A tradução do espanhol para o português é de Thiago Lemos Silva.

Por Nadia Ledesma Prietto e Gisela Manzoni

A ausência das mulheres na produção historiográfica é uma constante que quase não contempla exceções. Nas numerosas obras que fazem referência à chegada de militantes de outras regiões para combater na Guerra Civil Espanhola, ou ainda naquelas que mais especificamente falam das pessoas chegadas à frente de batalha a partir desta região do mundo, as mulheres costumam ter um papel marginal. Essa invisibilização se repete, apesar de  muitas delas terem sido destacadas artífices dessas realizações.

O caso de Mika (Micaela Feldman ou Micaela Feldman de Etchebéhère) talvez seja o mais emblemático. Sua figura geralmente é recolhida para destacar a excepcionalidade das suas atividades na frente de batalha, tarefas que, segundo suas próprias memórias[1],  conseguiu levar adiante sem perder muitas das particularidades que historicamente foram atribuídas às  condutas femininas, especialmente o cuidado e a amorosidade com os quais tratou as pessoas que foram suas companheiras.

Para além dessa excepcionalidade, foram muitas as mulheres que responderam aquele apelo de solidariedade contra o fascismo e pela revolução. Interessa-nos, aqui, destacar a  trajetória da advogada Ana Piacenza, anarquista da cidade de Rosário, província de Santa Fé, que fez parte da Organização Mujeres Libres da Espanha e, até o momento, é a única da qual temos registro.

Ana chegou a Barcelona em 28 de dezembro de 1936, junto ao seu companheiro José Grunfeld, como delegação da Federação Anarco-Comunista Argentina – FACA -, criada em 1935.  Anita e José – como a maioria da militância – viajavam com passaportes falsos – tática empregada para burlar os controles do Comitê de Não Intervenção na Guerra e que buscava evitar que armas e combatentes entrassem na Espanha. Segundo as memórias do próprio José Grunfeld, as passagens foram custeadas com seu próprio dinheiro[2]. Em Barcelona, compartilharam casa com Jacobo Prince e Jacobo Maguid, na rua de Muntaner 514 e fizeram parte parte da comunidade argentina ou da militância do Rio da Prata, como muitas vezes preferiram se identificar. A “colônia”, como aparecia assinado em alguns documentos, tinha suas múltiplas tarefas para fazer chegar até seus países de origem informações sobre o que ocorria no outro lado do Atlântico, alentar o envio de insumos e fomentar a luta contra o fascismo. Além da vasta  produção escrita  que desenvolveram  nos numerosos meios que o anarquismo impulsionava na Espanha e da reprodução feita daqueles textos nos meios ácratas da Argentina, a correspondência enviada para a FACA é o que faz possível reconstruir as  trajetórias grupais e individuais[3].

Parte deste percurso é reconstruído por trabalhos integrais, como os da historiadora Maria Miguelañez Martinez, que analisa as redes transnacionais do anarquismo durante  o período de entreguerras, especialmente da Argentina, e a convivência entre diferentes esferas do local, a nacional e a internacional na militância ácrata. Entre outras questões de seus interessantes estudos, a autora também adverte sobre a notável presença no anarquismo que se desenvolvia na Argentina[4]. Do mesmo modo, o  trabalho de María Eugenia Bordagaray[5]  ressaltou uma dimensão pouco presente nestes temas: a maneira como a militância política ácrata esteve fortemente entrelaçada pelos vínculos de casal. Reconstrói, para tanto, a história militante de dois  casais centrais do anarquismo daqueles tempos: Ana Piacenza y José Grunfeld e Iris  Pavón e Marcos Dukelsky[6].

Nita Nahuel, nome que Anita assume na Espanha, começa a trabalhar na redação de  Tierra y Libertad e Solidaridad Obrera e se une à Organização Mujeres Libres como integrante da Federação de Barcelona, onde ocupa um lugar central. Entre as  atividades que realizava, se encontravam as campanhas radiofônicas junto a Concepción  Liaño, Rosa Boesa e Pilar Grangel e as excursões de propaganda oral em  Montcada i Rexach, Olesa e no Ateneu Libertário do Distrito IV (Barriada 2 Les Corts)[7].  Na revista Mujeres Libres, destacavam sua “cálida exaltação do sentimento feminino”.[8]  Nita Nahuel assina um dos artigos mais polêmicos dessa publicação: “Os que desonram ao anarquismo”. Decidimos reproduzi-lo na íntegra, já que nossas palavras não poderiam substituir a  eloquência das suas para refletir algumas das questões que viemos tentando plasmar neste prólogo. 

“José Ingenieros, um célebre sociólogo argentino, dizia que a emancipação da mulher depende da transformação da sociedade; que a Revolução Social traria com ela a liberdade econômica, política e sexual da mulher. Eu começo a duvidar disso.

Eu começo a pensar que depois da Revolução Social, nós mulheres teremos que fazer “nossa revolução”. Existem muitos dados para nos fazer refletir sobre o tema.

Vamos colocar um caso como exemplo.

Na Espanha, que já está realizando e vivendo sua Revolução Social, as mulheres se encontram tão submetidas ao homem como em qualquer país burguês. Há poucos dias, foi difundida a notícia de que haviam caído quatro povoados de Aragão em poder dos fascistas. Um grupo de mulheres que se encontravam reunidas na Agrupação Mujeres Libres [de Barcelona] improvisou imediatamente uma manifestação. Uma manifestação massiva percorreu as Ramblas e chegou até a sede do governo catalão exigindo: “Armas para a frente de batalha de Aragão!”, “Menos política e mais armas!”, “Abaixo os altos salários!”,  “Igualdade para todos no sacrifício!”,  “Armas, armas, armas!” …

Ao passar em frente à Casa CNT-FAI e à sede das Juventudes Revolucionárias realizaram vários Vivas à Revolução. Algumas companheiras que ficaram para trás presenciaram algo que dá  vergonha dizer. Um indivíduo que usava um lenço vermelho e negro no pescoço começou a proferir insultos e ameaças contras as companheiras da manifestação. Uma delas se aproximou dele e lhe perguntou por que fazia aquilo. Ele respondeu que era porque tinha vontade e continuou comentando o assunto de forma agressiva e brutal, a tal ponto, que a  companheira, atemorizada, teve que se retirar.

Sabemos que cretinos existem em todas partes; mas o que convém saber é precisamente isso: se se trata simplesmente de um cretino ou de um fascista emboscado. Se for o primeiro caso, trataremos de averiguá-lo já, e nisso devem estar interessados também os companheiros da CNT. Se for o segundo caso, cabe, antes de tudo arrancar a insígnia do seu pescoço e a pistola da sua cintura, para que aprenda a omitir a violência e a intimidação quando fala com as companheiras.

Os trogloditas, disfarçados de anarquistas, os covardes que atacam pelas costas, os “valentes” que levantam a voz e a mão para uma uma mulher, estão mostrando sua verdadeira cara enquanto fascistas e é preciso desmascará-los.

Será que depois de tanta dor e tanto sacrifício, ainda teremos que pedir licença para defender a vida daqueles que lutam nas frentes de batalha, vidas essas que nós criamos  com nossa carne e com nossa angústia?!

Será que vamos tolerar que, depois de tanta literatura anarquista escrita exaltando a liberdade feminina, de  tanto discurso libertário proclamando a liberdade de direitos, de tão longa luta emancipadora, venham “anarquistas” nos agredir porque queremos impedir, com a garantia de um armamento eficaz,  a matança inútil de nossos filhos nas frentes de Aragão?!

Será que vão nos impedir que peguemos os fuzis com nossas próprias mãos que estão sobrando aqui para levá-los aonde fazem tanta falta?!

Será que os companheiros anarquistas vão permitir que se ataque, impunemente, as companheiras anarquistas?! Há lenços e  pistolas mal colocados e isso é preciso evitar, companheiros anarquistas?!” [9]

O compromisso de Anita com a revolução e com as mulheres antifascistas era absoluto. Assim o expressava em um artigo publicado em Tierra y Libertad em representação das  mulheres antifascistas da Argentina. [10] Do mesmo modo, esse compromisso ficou plasmado com o lugar central que teve na Organização Mujeres Libres. Por exemplo, no Segundo Congresso da Regional Catalã de Mujeres Libres, foi escolhida como uma das oradoras no ato de encerramento com Áurea Cuadrado e Lucía Sánchez Saornil. Em sua intervenção, expôs as ideias que foram publicadas no editorial inaugural do n. 1 da revista Mujeres Libres. Particularmente, assinalou as mudanças que as mulheres da Espanha experimentaram ao se desfazer da tutela religiosa e motivou-as a continuar na luta apesar da dor[11].

No ano seguinte, já grávida de sua primeira filha, Anita voltou à Argentina, à  cidade de Rosário, onde seguiu se movimentando, foi perseguida e detida na Prisão“Bom Pastor” por quase um ano, em 1943. Sem deixar que essa experiência consiga amedrontá-la, em 1946, cria junto a outras mulheres a União de Mulheres Socialistas Libertárias de Rosário, que lutava pela igualdade de direitos entre homens e  mulheres, a maternidade consciente e direitos para as mulheres trabalhadoras. Mais tarde, e é o último registro que temos na imprensa anarquista, a encontramos como responsável de um consultório de educação sexual na publicação Luz, de Rosário. [12] 


[1] ETCHEBÉHERE, Mika. Mi guerra de España. Buenos Aires: Milena Cacerola y Motoneta Cine, 2013.

[2] É interessante destacar que na maioria dos trabalhos que se referem à viagem de militantes da F.A.C.A, Ana tem um papel secundário, como acompanhante de… e suas atividades e tarefas não são detalhadas em extensão, nem são destacados seus cargos políticos, como é feito com os seus companheiros.

[3] GRUNFELD, José, Memorias de un anarquista. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 2000.

[4] WESSELS, Astrid. Militantes Anarquistas del Río de La Plata en el Movimiento Libertario Español. Federación Libertaria Argentina. Biblioteca Archivo de Estudios Libertarios. Catálogo de Publicaciones, Folletos y Documentos Anarquistas Españoles, Buenos Aires, Editorial Reconstruir, 2005.

[5] MARTÍNEZ, María Migueláñez. Más allá de las fronteras: el anarquismo argentino en el periodo de entreguerras. Tese ( doutorado em História) Departamento de Historia Contemporánea de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Autónoma de Madrid, 2018.

[6] BORDAGARAY, María Eugenia. Luchas antifascistas y trayectorias generizadas en el movimiento libertario argentino (1936-1955), Cuadernos De H Ideas, n.7, 2013.

[7] Tanto Anita Piacenza como Iris Pavón  participaram antes e depois da Guerra Civil Espanhola das organizações  antifascistas, antimilitaristas e de reivindicação  da liberdade de pessoas presas por motivos políticos que impulsionaram o anarquismo na Argentina. Neste sentido, é interessante ver como o discurso antimilitarista das anarquistas contrasta, em seu tom maternalista, com o tom da prédica que defenderam  como e para as mulheres em outras questões. Sobre antimilitarismo e anarquismo na Argentina, consultar: MANZONI, Gisela. Antimilitarismo y antifascismo: particularidades de la intervención pública de las anarquistas argentinas. Cuadernos del Sur.n 41, 2012.

[8] Actividades de la Agrupación Mujeres Libres”, Revista Mujeres Libres,  Nº 8, X mes de la revolución, 1937.

[9] NAHUEL, Nita.Los que deshonran al anarquismo. Revista Mujeres Libres,  Nº 7, VIII mes de la revolución,1937.

[10] NAHUEL, Nita.Las mujeres de la Argentina a sus hermanas de la España revolucionaria. Tierra Libertad. Barcelona. 15/11/938.

[11] Solidaridad Obrera. 15/02/1938.

[12] BORDAGARAY, María Eugenia.Mujeres en el movimiento libertario argentino durante el peronismo (1946-1955). Terceras Jornadas Nacionales de Historia Social, 11, 12 y 13 de maio de 2011.La Falda.Córdoba – Argentina.

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