Desde semana passada, o mundo tem acompanhado atentamente o que vem acontecendo na Ucrânia, país do leste europeu que vem travando uma guerra com a Rússia. O conflito já deixou centenas de civis mortos e mais de um milhão de refugiados, saldo que pode aumentar à medida que a guerra se desenrole. Os motivos da guerra são vários, defini-los é algo que depende da narrativa – pró-Rússia ou pró-Ocidente. Mas podemos retomar às primeiras escaramuças com a anexação da Crimeia por parte da Rússia em 2014.
Entretanto, a questão aqui é a outra face da guerra: o racismo e a xenofobia que não dão trégua nem em momentos como o atual. Desde o início do conflito, há vários relatos de refugiados africanos impedidos de sair do país para dar lugar a ucranianos que também buscam refúgio. Nas estações de trem, abarrotadas de pessoas desesperadas, africanos são deixados para serem os últimos a embarcar – caso reste algum lugar. A Ucrânia é o lar de milhares de imigrantes que se instalaram lá, entre sírios, indianos, nigerianos etc.
Na fronteira com a Polônia, país que vem sendo a principal porta de saída para pessoas que fogem da guerra, imigrantes africanos relataram que são impedidos de passar e tratados com truculência. “Eu estava implorando, o oficial literalmente olhou nos meus olhos e disse, em sua língua: ‘Apenas ucranianos. É isso’. Disse que se você for negro deve ir andando”, contou para um jornal britânico uma imigrante nigeriana.
A rapidez com que a União Europeia soube lidar com a crise de refugiados ucranianos é louvável. Os países da zona do euro concederam o direito a residência, trabalho, assistência médica e educação para todas as pessoas fugindo da Ucrânia. Porém, causa certo incômodo lembrar que a mesma União Europeia buscou barrar, de todas as formas possíveis, refugiados sírios, afegãos e africanos que também fugiam e fogem de conflitos em seus países. Esse tratamento diferenciado tem uma explicação óbvia: racismo.
Essa desumanização de pessoas não brancas ou não ocidentais não é de hoje. Bombardeios na Síria e massacres no Iêmen, são encarados com normalidade pelos europeus, que assistem a tudo sem dar importância. Em tese, a rica e “civilizada” Europa, distante das zonas de guerra no terceiro mundo, não seria palco de tais “barbáries”, comuns nos países subdesenvolvidos.
Esse preconceito todo também reside na concepção que a Europa foi construindo sobre o Oriente, bojo que rotula qualquer lugar fora da Europa e América do Norte. Esse estigma permaneceu após séculos de imperialismo e colonização na África e na Ásia. Inferiorizar os povos nativos e estabelecer hierarquias entre raças fazia parte do modus operandi de dominação. Por isso, até hoje vidas negras, pardas, amarelas não importam muito. Apenas cidadãos europeus, brancos e de olhos azuis, sendo mortos em ataques russos, são capazes de comover o Ocidente.
Na cidade francesa de Calais, última etapa para refugiados que buscam chegar ao Reino Unido, ucranianos são recebidos de maneira calorosa, com alojamentos e abrigos à disposição. O mesmo não acontece com refugiados sudaneses, sírios e afegãos que dormem na calçada ou em tendas nas ruas. Além disso, estes também sofrem com a hostilidade da polícia e da população local.
O racismo e a xenofobia ficam ainda mais latentes na fala de jornalistas ocidentais que vem cobrindo o conflito. Um comentarista da CBS, sobre os ataques russos em Kiev, chegou a dizer que “esse não é um lugar como Iraque ou Afeganistão (…) essa é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”. O apresentador inglês da Al Jazeera, Peter Dobbie, ao falar sobre os ucranianos que fogem da guerra, disse que “essas são pessoas prósperas, de classe média. Obviamente, não são refugiados tentando fugir de áreas como o Oriente Médio”.
Além do racismo escancarado, o discurso eurocêntrico se mostra nas opiniões que vêm circulando na internet e na cobertura da grande mídia, que não enxerga o drama de outros povos fora do eixo europeu. No Brasil não é diferente e os combates entre russos e ucranianos vêm ocupando as primeiras páginas desde que começaram. Não que o conflito no leste europeu não mereça atenção, mas caberia uma cobertura mais crítica sobre o conflito, evitando preconceitos e eurocentrismos.