Fachadas e enchentes

Como uma crônica de Lima Barreto nos provoca a pensar na questão urbana em Patos de Minas.

A seguir, republicamos, seguida de breve comentário, a crônica “As enchentes”, de Lima Barreto, o literato que também foi um “triste visionário” da República e perspicaz apontador das mazelas urbanas do Rio de Janeiro do início do século XX. Trata-se de tema fora da moda noticiosa do momento em Patos, mas insistimos na sua importância, independentemente das condições meteorológicas1A ortografia foi atualizada para tornar a leitura mais fluida..

As enchentes

Correio da Noite, Rio de Janeiro, 19-01-1915

As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro inundações desastrosas.

Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.

De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples problema.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.

Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha!

Não sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a solução da questão.

O prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito no nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.

Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.

Obra criada por Dalton Paula para ser capa do livro “Triste visionário”, de Lilia M. Schwarcz. O trabalho pautou-se nas poucas imagens que restaram do escritor e, em lugar do processo de branqueamento, presente em muitas fotos dos anos 1910 e 1920, neste caso destacam-se, propositadamente, estereótipos visuais e sociais que marcaram as populações afrodescendentes no Brasil e no exterior. Mas o retrato é sobretudo digno e imponente na verdade e na expressão altiva que carrega. (Informações da autora citada.)

Comentário

Foi no literal calor de uma tarde ensolarada de domingo em Patos de Minas que propus aos camaradas do Patos à Esquerda a publicação dessa crônica.

Sabemos que, normalmente no verão, a imprensa local trata de fazer uma cobertura do “problema das chuvas”. Os estragos causados por tempestades e pelas enchentes já viraram prato cheio para alguns jornais, tipicamente em fins ou começos dos últimos anos. Em 2023, o tema ganhou mais atenção em meados de janeiro, quando dezenas de famílias ficaram desalojadas e tiveram severas perdas materiais.

Ocorre que a questão é sempre tratada como se fosse resultado de chuvas supostamente imprevistas, fortes demais, “fora da curva”. Trata-se, na verdade, de um problema de urbanização raramente considerado pelos políticos da Villa de Patos2Muito ocupados organizar estranhas parcerias com empresas, conseguir popularidade no Instagram ou até policiar a linguagem das escolas e instituir datas comemorativas pra lá de estúpidas. fora dos períodos críticos.

Aproveito a deixa para lembrar que a resolução do problema do escoamento superficial das águas das chuvas é uma das diretrizes gerais da Política de Saneamento Ambiental há muito tempo. Vale notar que a revisão de 2006 do Plano Diretor (governo de Antônio do Valle Ramos) já (ou apenas) falava de uma “efetiva solução dos problemas de drenagem urbana3Inciso I do art. 32 da Lei Complementar Nº 271, de 1º de novembro de 2006.. No ano passado, o Plano Diretor foi revisto novamente, mas a questão do escoamento superficial permanece só como uma diretriz geral da Política de Saneamento Ambiental. Ou seja, 15 anos depois, ainda se fala na resolução do problema como algo a ser feito, uma diretriz sem muita especificidade e que ganha contornos de compensar o problema, em vez de atuar sobre suas causas:

Apresentar solução de manejo das águas pluviais nos empreendimentos, priorizando a utilização de estruturas compensatórias que favoreçam a retenção temporária do escoamento superficial, a infiltração e percolação da água no solo, tis como reservatórios, bacias de estocagem, planos de infiltração, trincheiras de percolação pavimentos porosos, retenção de água de chuva, entre outras medidas4Incisio XXII, art. 58 da Lei Complementar 660, de 21 de março de 2022..

É notório que a solução do problema não é nada simples. Tampouco a realocação de moradias é medida suficiente, embora possa ser necessária. Este post, portanto, é um chamado para que pensemos na questão, estudemos ela e cobremos não só o cumprimento das diretrizes, mas seu aperfeiçoamento em especificidade.

Que o velho Lima Barreto possa nos motivar a ver esse problema para além das fachadas, em sua contradição no próprio fazer-se da cidade, sob a pena de sermos obrigados a ver um problema da urbanização ser tratado sempre como um problema da natureza.

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