Um porta-aviões, um porta-helicópteros, seis contratorpedeiros, quatro navios petroleiros e cem toneladas de armas. Todo esse poder de fogo foi enviado pelo governo dos Estados Unidos ao Brasil em 31 de março de 1964, como parte da operação Brother Sam. Tratava-se do apoio militar estadunidense ao golpe que se desferiria naquele dia contra o presidente eleito, João Goulart. Houve, de fato, deslocamento desse aparato militar no Atlântico Sul, mas seu uso foi dispensado, uma vez que não houve resistência armada por parte do governo golpeado1Informações retiradas do livro História do Brasil Contemporâneo: da morte de Vargas aos dias atuais, de Carlos Fico. (São Paulo: Editora Contexto, 2019, p. 52). O capítulo “Desenvolvimento e retrocesso” é referência para outras informações deste texto.. A operação, no entanto, desmente a ideia de que a direita golpista estaria agindo em prol do interesse nacional.
Hoje, 59 anos depois do golpe,2Apesar de os militares forçarem a barra para a utilização da data do 31 de março, o fato é que o golpe não ocorreu em um só dia. A autorização do governador mineiro Magalhães Pinto, por exemplo, foi em 28 de março. Como, porém, a movimentação de tropas começou no dia 31, sob o comando de Mourão Filho, a notícia dessa mobilização seria mais publicizada no dia 1 de abril, gerando uma “piada pronta”, por causa do dia da mentira. o Brasil ainda sofre com o autoritarismo, com a falta de cidadania plena, com as violências sociais e policiais e com a desigualdade. Mazelas do capitalismo que, embora não tenham sido criadas pela ditadura, foram aprofundadas por ela.
Diziam os golpistas que Goulart é que daria um golpe de Estado, instaurando um regime apoiado por sindicatos. Esses setores (representados pelo barulhento entreguista Carlos Lacerda, em 1955, e pelo ex-ministro da Guerra ligado ao governador Magalhães Pinto, Odílio Denis, em 1964) temiam ainda que o comunismo superaria o trabalhismo ideologicamente e o Brasil se tornaria comunista. Nascia aí a tão repetida afirmação de que os militares brasileiros, entregando-se aos anseios dos EUA, dos ricos do setor financeiro e agrário e de corporações estrangeiras, estariam, na verdade, fazendo uma “revolução” e salvando o Brasil do comunismo.
Embora Goulart fosse trabalhista, seu governo e aliados (até mesmo os mais radicais, como Brizola) passaram longe de defender o comunismo. Goulart era um fazendeiro e suas medidas, tão temidas pelos ricos do país e do exterior, visavam resolver problemas longevos do Brasil não pela via revolucionária social, como defende o comunismo, mas por um reformismo institucionalizado, dentro das regras da democracia liberal de então. Eram as “Reformas de Base”, que envolviam a reorganização do espaço rural, a reforma do sistema bancário, a solução do problema habitacional e até uma reforma nas Universidades.
Até hoje, a ideologia de Goulart, o trabalhismo, talvez tenha sido a que mais se aproximou, estando no poder, da defesa dos interesses nacionais. Fez isso colocando em pauta uma visão ampla do desenvolvimento do país, que passava a ser pensado em longo prazo. Daí o incômodo do imperialismo estadunidense. Não havia, portanto, um grande “perigo comunista” – infelizmente, diga-se de passagem. Houve, porém, um aborto de uma possibilidade de romper com a dependência econômica e de democratizar a sociedade.
O uso do termo “revolução”, na verdade, mascara o caráter conservador e reacionário do acontecimento. Explicando: desde a Revolução Francesa de 1789, revoluções são caracterizadas pela mudança drástica e profunda da organização da sociedade, atuando a nível estrutural. Golpes, por outro lado, são rupturas institucionais que atingem o centro do poder político violando as regras do regime considerado legítimo. Diferentemente de revoluções, golpes causam alterações a nível conjuntural.
Em sua formação, ao longo do século XIX, o conservadorismo foi contrário à revolução: ele reage à Revolução Francesa e àquelas que nela se inspiraram. Porém, no século XX, os fascistas italianos tentaram chamar para si o status de revolucionários, percebendo que havia nele uma conotação positiva. O uso do termo por eles, assim como pelos militares brasileiros e seus apoiadores, é falsificador: em vez de provocar mudanças estruturais na sociedade com amparo popular, esses movimentos – fascistas ou de tendência fascista – praticam um extremismo de direita, isto é, levam ao extremo da arbitrariedade as opressões já presentes no capitalismo, reforçando-as.
Em 1964, por via de uma rebelião/conspiração militar golpista, instaurou-se um regime político que, bem longe de alterar profundamente a organização social no Brasil, reafirmou o poder dos ricos industriais e financistas, dos latifundiários e do capital estrangeiro. Em termos econômicos, ampliou o fosso de desigualdade social e, ao mesmo tempo, promoveu uma modernização na produção, que, também conservadora, industrializou o país mantendo-o dependente de empresas e investidores estrangeiros e fez incrementos técnicos no setor agrícola sem romper com o caráter concentrado da propriedade rural.
Isso tudo a custo de perseguições, tortura, censura, prisões arbitrárias, “desaparecimentos” e outras formas de terrorismo de Estado. Aliás, “terrorismo” é outro termo interessante do período: os comunistas foram chamados pela ditadura de terroristas, mas o regime tornou-se notável, por exemplo, por atentados como o do Riocentro, em 1981, quando militares tentaram explodir uma bomba no Centro de Convenções, que estava com cerca de 20 mil pessoas, para uma celebração do 1º de maio. Tudo para colocar a culpa nos “terroristas” comunistas, na maior cara dura.
Sendo esse o nível de falta de vergonha do regime defendido com unhas e dentes pela direita bolsonarista, não é de se estranhar que haja tamanho descaramento em figuras como Bolsonaro e seus generais bisonhos e oportunistas. Com cinismo e desfaçatez, muitos militares e políticos defendem a comemoração do dia 31 de março. Atestam, assim, sua conivência e apoio à tortura, à autocracia, à corrupção e ao servilismo em relação aos EUA – elementos inerentes e essenciais ao Regime Militar (1964-1985).
Não é, então, por acaso, que hoje há uma queda de braços entre o governo Lula e seus subordinados militares. Essa disputa pela memória é definidora da governabilidade: se perdê-la, ou seja, se deixar que o golpe seja celebrado impunemente, o governo se tornará marionete do Partido Fardado, que deveria ser totalmente desbaratado. Tomás Paiva, o comandante do Exército, afirmou que os militares da ativa que celebrarem a data podem ser punidos. Por trás dessa declaração, há uma conjuntura na qual o governo tenta resolver os problemas políticos por meios administrativos, em vez de convocar o povo para manifestar publicamente aquilo que também sinto: ódio à ditadura, ódio e nojo.
Não se deve contar com o bom comportamento de militares para se garantir a estabilidade do Estado de Direito – afinal, ele é um mínimo a partir do qual devemos demandar muito mais.