Em 1992, quando perguntada no Roda Viva se tinha algum preconceito, Fernanda Torres respondeu sem hesitar: “contra crente”. Esse trecho, posteriormente, viraria meme e é frequentemente citado em tom de anedota, apesar de Fernanda Torres recentemente se arrepender de ter falado aquilo.
Mas quem seria o “crente”? O sentido dessa palavra foi ressignificado no imaginário popular. Crente não é mais quem crê em alguma divindade, seja Maomé ou Jesus Cristo, mas aquele fanático religioso, que incomoda as pessoas a sua volta, que é preconceituoso, que vive para a igreja. Essa figura se tornou popular com a ascensão de igrejas evangélicas nos últimos tempos.
Para se ter uma ideia, em 1990, os evangélicos representavam apenas 9% da população, segundo o IBGE. Em 2020, os evangélicos já representavam 31% da população brasileira, de acordo com o DataFolha. São consideradas evangélicas as igrejas pentecostais, neopentecostais e missionárias. No Brasil, há um predomínio das igrejas pentecostais e neopentecostais, como as igrejas Universal, Assembleia de Deus, Quadrangular, Deus é Amor, entre outras.
Essas denominações são conhecidas pela sua ênfase nas questões morais, pelo tom carismático das pregações, seu anti-intelectualismo e pela teoria da prosperidade – ideia de que o enriquecimento individual é uma benção divina. No Brasil, essas igrejas têm construído impérios, como a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, que possui milhares de templos no Brasil, na América Latina e na África, além de contar com redes de rádio e televisão. Por esse motivo, representantes dessas igrejas formam um lobby poderosíssimo no Congresso Nacional – a chamada Bancada Evangélica, também chamada de “Bancada da Bíblia”.
Diante disso, qual é a relação que a esquerda brasileira pretende construir com essas igrejas? E em maior instância, com a religião?
De antemão, a relação entre a esquerda e a religião sempre foi tortuosa. Como na Guerra Civil espanhola, quando a Igreja Católica apoiou o fascismo para derrubar o governo da Frente Popular de 1936. E como no Golpe Militar de 1964, que contou com o apoio da Igreja Católica e derrubou o governo João Goulart. Mais recentemente, nas eleições de 2018 e de 2022, ficou explícito o apoio de pastores evangélicos ao candidato de extrema direita Jair Bolsonaro.
Mesmo que o primeiro governo Lula (2002-2006) tenha facilitado a abertura de templos religiosos no Brasil, desobrigando igrejas de várias responsabilidades, essa medida não foi suficiente para garantir o apoio de grupos evangélicos aos seus governos. Hoje, essa relação piorou ainda mais com líderes da bancada evangélica prometendo travar qualquer proposta do governo, enquanto não seja revertida a medida que tributa pastores evangélicos.
Karl Marx já dizia que a religião é o ópio do povo, mas as discordâncias entre esquerda e religião são muito mais profundas. Diversas pautas primordiais para a esquerda entram em choque com interesses religiosos, como a reforma agrária, a revolução social, a emancipação feminina e uma educação laica. Essas diferenças são encaradas por líderes religiosos como uma guerra entre o bem e o mal e têm sido o principal obstáculo para a esquerda se popularizar.
Segundo o censo de 2010, realizado pelo IBGE, 90% dos brasileiros se consideram cristãos. E de acordo com uma pesquisa do Datafolha, 53% dos brasileiros frequentam templos religiosos. Ademais, é dentro das igrejas que pastores e padres pregam o anticomunismo aterrorizando os fiéis com fake news. Se não bastasse, utilizam internet, rádio e TV para disseminar ideias reacionárias que demonizam a esquerda. Pregam que a miséria da população é culpa da esquerda e não da exploração do capitalismo.
Embora pareça difícil, é possível avançar nesse terreno espinhoso. Atacar símbolos religiosos não é uma estratégia inteligente em um país em que a religião está tão enraizada no imaginário popular . É preciso direcionar as críticas a líderes religiosos exploradores e opressores como Edir Macedo, Silas Malafaia, Magno Malta, Damares Alves, Marco Feliciano, entre tantos outros. Esses líderes evangélicos possuem uma trajetória de enriquecimento ilícito abocanhando o dinheiro dos fiéis.
Recentemente, viralizou um vídeo do pastor José Wellington, presidente da Igreja Assembleia de Deus de Belém (PA) dirigindo um carro luxuoso avaliado em 1,3 milhão de reais, equivalente a quase mil salários-mínimos. Um perfil no Instagram intitulado outifits do templo, vem expondo pastores ostentando grifes milionárias como Gucci, Dolce & Gabbana, Rolex – alguns itens avaliados em até 400 mil reais. No perfil, o pastor Silas Malafaia já apareceu utilizando um Rolex no valor de 94 mil reais.
Além da ostentação, pastores da Igreja Universal do Reino de Deus já foram denunciados pela TV portuguesa de se envolverem num esquema global de tráfico de crianças, que eram adotadas ilegalmente por pastores da igreja durante a década de 1990.
A Igreja Universal também já foi acusada de racismo por bispos da igreja em Angola. Mas não para por aí, de acordo com os bispos angolanos, a direção brasileira foi denunciada por violação dos direitos humanos, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e de forçar a esterilização de pastores angolanos. Segundo denúncias, a Igreja Universal chegou a levar ilegalmente 120 milhões de dólares de Angola para a África do Sul.
Tal episódio levou à expulsão da Igreja Universal de Angola em 2021. Hoje, ela é chefiada pelos próprios bispos angolanos. Em São Tomé e Príncipe, outro país africano, denúncias semelhantes levaram à depredação de vários templos da igreja de Edir Macedo. O Congresso são-tomense chegou a discutir a expulsão da Igreja Universal do país, que não chegou a ocorrer.
Expondo o racismo e o enriquecimento ilícito de grandes igrejas evangélicas, que acontece às vistas do Estado, tal como sua relação promíscua com a política, é a verdadeira estratégia que a esquerda deve adotar. Adotar uma postura antirreligiosa em um país majoritariamente cristão afastaria ainda mais a classe trabalhadora. É preciso respeitar a religiosidade do povo brasileiro, mas combater o discurso de ódio e, principalmente, a teoria da prosperidade de igrejas evangélicas que servem de braço para a exploração e opressão do capitalismo.