Introdução
Em tempos de massacre israelense sionista contra o povo palestino, a memória do holocausto pode parecer algo distante dos assuntos da ordem do dia. Porém, a oposição ao cerco israelense genocida requer uma correta compreensão desse acontecimento, de modo que não se recue diante da instrumentalização da dor dos judeus feita pela ideologia sionista.
A saber, o sionismo, uma forma de “nacionalismo judeu”, defende a existência de um “Estado judaico” na Palestina. Não é exagerado dizer que se trata de uma ideologia que se baseia em uma versão reformulada da noção de “Comunidade do Povo”.1O historiador inglês Richard Evans argumentou que a tal “Comunidade do Povo” era mesmo um elemento de propaganda, bem mais do que algo real e observável nas relações sociais, em que o ganho material com a pilhagem do holocausto e da dominação da Europa tinham um papel essencial na sustentação do nazismo… Essa “Comunidade” era um mito de propaganda nazista que dizia que os alemães, à exceção dos indesejados e perseguidos, comporiam uma união coesa e cooperativa. Articulando essa sociedade restrita, fascinada por si própria, estaria o Estado nazista.
A mesma lógica de sociedade restrita é direcionada agora contra os palestinos, sendo operada pelos judeus sionistas. A contradição, portanto, está posta: um povo historicamente perseguido, os judeus (em sua diversidade), passa a ter uma fração perseguidora e exterminadora de outro povo. “Quem poderia imaginar que Davi seria Golias?”2Referência a um verso da música “intifada”, da banda espanhola Ska-P.
A série
É nesse contexto delicado que a série A Small Light (“Uma pequena luz”), criada por Tony Phelan e Joan Rater, pode ser interpretada, no contexto atual, como um lembrete de algo ainda mais básico e contraditório: o esquecimento ou o menosprezo (especialmente por parte dos sionistas!) do significado prático e cotidiano da dominação/ocupação nazista. A série conta a história de Miep Gies, uma mulher que trabalhou como secretária para Otto Frank, pai da autora do mais famoso diário de guerra da Segunda Guerra Mundial, Anne Frank, morta aos 15 anos de idade, em fevereiro/março de 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen.
Não sejamos ingênuos: distribuída em serviço de streaming, produzida por uma empresa estadunidense como o National Geographic, com a participação do Keshet Media Group, israelense, era de se esperar que o espaço criativo e crítico da série fosse mínimo ou nulo. Apesar disso, a trama apresenta uma visão que, apesar de seu contexto, entrega um conteúdo que convida o espectador a uma reflexão sobre como a vida comum é afetada por um evento geopolítico de larga escala.
Análise
Os nazistas ocuparam Amsterdã em maio de 1940. Ainda que previsível, a invasão não era conhecida em seu impacto, algo que é expresso na estética da série, em que se vê frequentemente os símbolos nazistas se sobrepondo à cidade e aos moradores. Salta da tela o choque e a tensão de se ver soldados marchando pelas ruas, bandeiras com suásticas, ordens de confinamento, postos de checagem, oficiais nazistas à espreita, possíveis colaboracionistas, violência explícita e membros do NSB (Movimento Nacional Socialista nos Países Baixos, partido nazista local) com notória penetração nas classes médias e altas. Otto Frank, retratado como um homem sério, pessimista e precavido, havia planejado um esconderijo para sua família, que usaria como pretexto para o sumiço uma falsa migração para a Suíça.
O detalhe é que o esconderijo era logo no andar de cima de onde funcionava a Opekta, empresa de Otto, que trabalhava com especiarias e pectina usadas na feitura de geleia. Ou seja, o esconderijo dos Frank era ousadamente “embaixo do nariz” dos nazistas e assim permaneceu por dois anos, até que a família foi denunciada. Essa situação implica na constante tensão da série, cujo eixo recai sobre Miep, mulher jovem, divertida e carismática, com vida social movimentada, que passa a ter que lidar, ao mesmo tempo, com as responsabilidades de uma empresa, de esconder oito judeus e de lidar com as pessoas do seu convívio prévio. Exemplo deste último ponto é a “amiga” Tess, personagem totalmente ficcional que representa aqueles que, além de “passarem pano” para o extermínio, adotaram um estilo de vida colaboracionista – Tess se envolve com um empresário do setor automotivo que fazia negócios com os nazistas.
Miep tem uma jornada que é, ao mesmo tempo, surpreendente pelas saídas que encontra e constante em não decepcionar quando se espera dela lealdade e astúcia. De uma jovem secretária surpresa com a previsível invasão da Holanda, a protagonista se transforma na articuladora das ações de todo o grupo, impondo respeito mesmo nos momentos de derrota e recorrendo a todas as possibilidades para ajudar os amigos.
Outro ponto de foco da produção é a relação entre Miep e seu marido, Jan Gies, um assistente social inicialmente discreto que, além de acompanhar as decisões de Miep, ajudando a esconder os Frank e seus amigos, trabalha clandestinamente para a Resistência neerlandesa. Cumpre observar que esse movimento foi organizado pelo Partido Comunista da Holanda, por parte da Igreja e por grupos independentes.
Jan é um personagem marcante: inicialmente duvidamos de sua posição e, ao fim, vemos nele uma representação da indignação e do peso de pensar ininterruptamente que deveria fazer mais contra os nazistas. O arco criado em torno dele é educativo: desde o início, Miep é coragem e solidariedade, enquanto Jan é cautela e individualismo. No primeiro episódio, quando Margot Frank (irmã de Anne) recebe uma carta dizendo que ela deveria ir para um campo de concentração Hermann van Pels (um dos que ficariam escondidos) vai à residência do casal informar que o plano de ir para o esconderijo deveria ser antecipado, Jan fica visivelmente irritado com o fato de não ter sido consultado/informado pela esposa e cobra atenção para si. Com a agudização dos acontecimentos, ele deixa de lado seu próprio interesse machista de autopreservação, arriscando-se, primeiro, para conseguir vales de alimentação e auxiliar Miep, e, depois, em tarefas organizadas pela Resistência – cada uma mais arriscada que a anterior. Além de ser movido pelo dever de ajudar os perseguidos, Jan tem seu niilismo convertido em ódio e ação contra nazistas, com um toque de discrição.
Incríveis doses de sorte, coragem e insubmissão mantêm Miep e Jan ao longo da difícil empreitada de esconder os seus amigos judeus. Em que pese o já conhecido desfecho terrível dessa empreitada, ela revela a angustiante espera pela chegada dos tão delongados Aliados, bem como a ascensão e o desmoronamento da ocupação nazista.
No que diz respeito à mistura de angústia e esperança de Miep e dos seus, é importante lembrar que Anne Frank, sua família e amigos foram delatados em agosto de 1944, que Anne morreu provavelmente em fevereiro ou março de 1945 e que os Aliados libertaram o campo de Bergen-Belsen em abril de 1945. Sem dúvida, a demora dos aliados é sentida fortemente nesses quase sete meses. Outro exemplo é a fome do inverno de 1944-1945, que fez o tempo até a chegada dos Aliados passar ainda mais vagarosamente. Na série, Jan chega a queimar móveis para fazer uma fogueira enquanto ele e Miep comem sopa de bulbos de tulipa3Como observou Diana Hubbel, “Em Setembro de 1944, os trabalhadores ferroviários holandeses tentaram perturbar o movimento das tropas e dos fornecimentos nazistas, paralisando os comboios do país. Em retaliação, os nazistas bloquearam o fornecimento de alimentos que chegavam por mar, no momento em que o país mergulhava num dos invernos mais frios de que há memória. Com os canais congelados, não havia forma de transportar alimentos para as cidades densamente povoadas de Roterdã, Amsterdã e Haia, na parte ocidental do país.” Ver mais em “Tulip Bulb Soup: the Dutch Dish Born From Tough Times”. Disponível em: <https://www.atlasobscura.com/articles/are-tulips-edible> Acesso em 16 jan. 2024. preparada por ela, que, como a maior parte das mulheres holandesas, foi a responsável pela sobrevivência das famílias (já que os nazistas estavam capturando homens holandeses para usar em campos de trabalho). Entre as causas do atraso da ofensiva dos Aliados esteve, como mostra o historiador Sidnei Munhoz em Guerra Fria: história e historiografia4O argumento pode ser verificado no capítulo 2, intitulado “A operação Barbarossa e a segunda frente de batalha”, especialmente nos subcapítulos “Indagações e hipóteses” e “Promessas e evasivas”., a tática estadunidense e britânica de deixar os soviéticos sangrarem no fronte oriental, a fim de dificultar a reconstrução do socialismo real no pós-guerra.
Quanto à ocupação nazista, os episódios captam as corruptelas e a soberba dos invasores. Isso é visível em como eles se apropriaram dos bens dos seus alvos e em como explicitaram seu desprezo sempre que podiam, mesmo quando a situação estratégica do Eixo era pouco ou nada promissora. É o que vemos no episódio 6, quando Miep, atropelada por dois militares nazistas, é tomada pela ira e xinga eles. Os dois olham para ela e riem com sordidez, retomando seu rumo e fazendo graça da agonia da Amsterdã ocupada.
Por falar em agonia, todos os benfeitores da série compartilham uma: a necessidade de silêncio, de “engolir sapos” e de evitar a morte de si e dos outros em um contexto em que a vida tem pouco ou nenhum significado para os opressores. O interessante é que, ao longo de toda trama, Jan, Miep e seus amigos se deparam com vários focos de resistência, em indivíduos e grupos. Os exemplos são vários: Gerrit, que entregava as batatas no prédio da Opekta e passa a aumentar as cargas discretamente; infiltrados entre os nazistas que ajudaram em fugas de judeus; LGBTs cujo bar rotineiro abrigava reuniões da Resistência; enfermeiras que extraviaram crianças para salvá-las; funcionários públicos manobrando o sistema de assistência social subversivamente. A Small Light mostra um cenário duro e lúgubre, por certo, mas sendo humanizado pela ação contumaz contra o fascismo – que pode muito bem servir de exemplo contra o sionismo.
Trailer
Ficha técnica: https://filmow.com/a-small-light-t355751/ficha-tecnica/