A mulher no caminho da revolução II

Frente à guerra e frente ao fascio I

Este texto é o segundo de uma série de três, que foi publicado por Lucía Sánchez Saornil no diário confederal CNT, de Madrid, em 29 de agosto de 1934, sob o pseudônimo de La Compañera X. Nele, a anarquista avança na discussão sobre o papel da mulher no processo revolucionário, criticando a atuação da organização Mulheres contra a Guerra e o Fascio, que buscavam imitar a lógica da atuação política masculina, reforçando assim as estruturas da sociedade patriarcal que diziam combater. A tradução do espanhol para o português é de Thiago Lemos e foi originalmente publicada no site da Redemoinho traduções.

Por Lucía Sánchez Saornil

O imperativo da atualidade me obriga a alterar a ordem que havia proposto seguir nestes artigos, para expor a série de reflexões que me suscitaram as recentes manifestações de Mulheres contra a Guerra e o Fascio[1].

Começaremos por aprovar este ato que teve a virtude de recobrar os movimentos dos rígidos membros femininos, de agitar os espíritos e sacudir as inteligências das mulheres lançando-as ao ar apaixonado e vivificador da rua.

Contra a guerra e contra o fascio! Quanto tempo esperávamos ouvir este grito nas bocas femininas! Mas, pensamos em seguida com dor que isto foi só um grito e nada mais, e que foi, além disso, um grito no deserto.

A guerra, o fascismo, são apenas manifestações de um estado de coisas: escavar, aprofundar, desnudar a causa, destruí-la, é a missão que a história tem reservada à mulher, é o trabalho que a humanidade tem o direito de esperar dela.

É preciso buscar um ponto privilegiado de observação, sacudir a poeira dos séculos e com os olhos limpos, com os olhos  bem abertos, esquadrinhar o panorama do mundo. Deixar de lado toda a falsa sabedoria masculina, desprezar toda sua ciência político-social e buscar a Verdade no fundo de nossas consciências. É preciso sacudir o tabuleiro e começar uma nova jogada. Todos os valores atuais são falsos, todos. E não é o suficiente mudar as nomenclaturas, é necessário alterar a essência e as entranhas das coisas.

Aceitar algo que existe seria reconhecer como boa a fórmula social que fez possível nossa escravidão de séculos. Temos em mente que a sociedade é como um conjunto de engrenagens em que todas as partes se complementam, não é possível retirar uma sem que se altere o equilíbrio do todo. E não podemos reivindicar nossa liberdade, nos rebelando contra a injustiça secular que nos manteve relegadas, sem considerar que, sobre essa mesma injustiça, está edificado tudo que nos rodeia. Que não existe, portanto, nada respeitável em nosso entorno. Que a humanidade inteira é vítima de um erro de interpretação e que é necessário romper em absoluto com o passado, recomeçar a vida.

Para isso é necessário buscar perspectivas novas e caminhos virgens. Os mesmos caminhos nos conduzirão inevitavelmente aos mesmos lugares. Os mesmos procedimentos aos mesmos erros. É preciso edificar uma vida nova por um procedimento novo.

 E quando isso estiver evidente, como não há de nos doer notar que a mulher, força intacta, reserva suprema da humanidade, se alistando nos velhos partidos políticos e desperdiçando seu tesouro de energias está a dar tapas no vento? Porque os gritos contra a guerra e contra o fascio são como tapas no vento, enquanto as raízes que lhe dão vida não são atacadas.

 Não é preciso gritar contra a guerra, mas sim fazer todas as guerras impossíveis, acabando de uma vez com os absurdos paradoxos masculinos, que organizam enquetes pela paz enquanto dão o esforço de seus músculos às fábricas de armamentos.

E não é, certamente, alistando-se nos partidos políticos que a mulher pode realizar este trabalho. A missão primordial dos partidos políticos é a conservação e defesa do Estado, e como, por sua vez, o Estado é o defensor e conservador de todos os valores criados – ainda que se fale de suas evoluções e de seus progressos mentirosos – resulta que a mulher, atuando na política, mantém e confere vida com seu esforço e com sua inteligência a mesma coisa que pretende destruir.

 A guerra nunca foi um movimento espontâneo dos povos; para que a guerra se faça possível, ela sempre se antecipa de um ciclo, mais ou menos longo, de aclimatação a cargo do Estado. Este agitou  abstrações velhas e vazias: a pátria, a honra – buscando com isso inflamar as paixões e despertar os ódios. Só em favor deste trabalho monstruoso, a guerra foi possível.

 A guerra, como a injustiça social, são mantidas e fomentadas pelo Estado; para acabar com aquelas é preciso acabar com este.

Mulheres, reflitamos. Observemos que todos os valores que governaram o mundo até hoje requerem uma urgente e minuciosa revisão. Que a luta contra a guerra será um movimento estéril se nos empenharmos em enfocar o problema a partir de pontos de vista enganosos que os homens vêm utilizando há séculos. É necessário buscar perspectivas novas, dizemos, e para isso o essencial é que a mulher trabalhe espontaneamente, deixando-se levar pelos impulsos de sua própria natureza, rebelando-se contra toda sugestão e toda coação do meio, seguindo, enfim, os ditames de sua consciência ainda não deformada por intrincados intelectualismos.


[1] O grupo de Mulheres Contra a Guerra e o Fascismo, ou ainda Associação de Mulheres Antifascistas ( AMA) foi uma organização feminina que surgiu no ano de 1933. Abrigada sob a tutela do Partido Comunista Espanhol, a organização cresceu rapidamente e passou a incorporar as seções femininas de outros partidos, como o socialista e o republicano.

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