Há pouquíssimo tempo que conheço Bad Bunny e, para ser sincero, como não sei falar outro idioma latino que não seja o brasileirês herdado da nossa ancestral Guiana Brasileira, dei pouca atenção para tal fenômeno de massas. Em outra oportunidade, aqui no Patos à Esquerda, Viviane Ribeiro abordou a forma pela qual a música latina é invisibilizada no Brasil tomando como exemplo justamente Bad Bunny. Meu irmão foi quem botou na caixinha para a gente ouvir a música “DtMF” (um acrônimo estilizado para “deveria ter tirado mais fotos” em espanhol). Com um ritmo viciante, o som calhou de encontrar naquele momento a perfeição. Estávamos reunidos ele, a nossa família e eu, de uma forma que não fazíamos havia anos e, com certeza, estávamos “embriagados” de nostalgia, de muita música, de afeto e de um “sunset bonito”. Foi aí que o meu irmão deixou escapar a frase gatilho desse texto, “Essa música me lembra do vô” — e assim, continuou citando a música que tocava — “queria ter dado mais beijos e abraços quando pude, ter tirado mais fotos, porque o nosso tempo já acabou”.
Desde já, peço desculpas ao meu irmão pela imprecisão das palavras. Minha memória é fogo.
A música “DtMF” fala sobre estar com a nossa galera e sobre registrar estes momentos em fotos, talvez como uma forma desesperada para manter a memória e, com ela, a identidade. O “esquecimento” abordado ao longo do álbum não diz respeito apenas aos afetos apagados pelo tempo e pela pressa da vida, mas também evoca o esquecimento das nossas raízes. Raízes que vão sendo diluídas, pouco a pouco, pela imposição imperialista sobre nossos costumes, a nossa cultura e as nossas paisagens.
A estética musical do disco é inteiramente ambientada na música tradicional porto-riquenha. O reggaeton, a plena, a salsa, o bolero e elementos do jíbaro estão presentes. O reggaeton, tal como o funk no Brasil, é o gênero musical que move o povão em Porto Rico e, geralmente, é estrategicamente colocado à margem como forma de manutenção da política anti-povo, como nos higienismos que vemos por aqui. Bad Bunny, reggaetonero audacioso como só ele, faz questão de “latinizar” o ouvinte, relembrando quem é de fato o povo, por vezes escondido sobre a artificialidade e a austeridade estadounidense.
Esquecimento ambiental e da gente porto-riquenha
Na música “LO QUE LE PASÓ A HAWAii”, Bad Bunny retrata uma Porto Rico que luta para manter suas paisagens que ainda estão intactas das ações ordenadas pela ganância. Ele compara o que acontece com Porto Rico, território estadounidense há mais de 120 anos, com o que se passou no Havaí. O Havaí perdeu toda a sua organização civilizatória, suas riquezas naturais, suas heranças culturais, seus costumes e se tornou, à força, subserviente ao governo estadounidense. O Havaí é hoje uma área militar estratégica, também um destino de safáris artificiais e uma colônia de férias lucrativa para os EUA.
Já no início da música, Bad Bunny cita que mesmo que Porto Rico tenha seus problemas, ela ainda “está bonita” e que possui regiões verdes em que “ainda se é possível respirar”. Aos poucos o autor vê as riquezas naturais da ilha deixando de existir, talvez em troca de uma promessa de progresso econômico — tal como nós aqui no Brasil estamos acostumados a presenciar o tempo inteiro enquanto vítimas do agronegócio — ou para construir “belos“ empreendimentos de luxo para aproveitar o “sunset” e as “playas” de San Juán.
Quieren quitarme el río y también la playa
— Trecho1 da música LO QUE LE PASÓ A HAWAii de Bad Bunny. Álbum “DeBÍ TiRAR MáS FOTOs”. 05 de Janeiro de 2025.
Quieren al barrio mío y que abuelita se vaya
No, no suelte’ la bandera ni olvide’ el lelolai
Que no quiero que hagan contigo lo que le pasó a Hawái
Ao ouvir o verso “Quieren quitarme el río y también la playa”, logo me recordei de algo que ocorreu há quase um ano. A PEC da Privatização das Praias, proposta que levava em consideração o apelo de grandes empreiteiros e supostamente do Neymar, visava modificar a regulamentação de posses de terrenos da marinha e abria precedentes para outorga de exploração mercadológica destes espaços. É claro que se fosse aprovada, dentre a perda de direito de pleno acesso às áreas delimitadas, perdíamos também a possibilidade de preservação da vida marinha que as cerca, e que ficariam à mercê do uso indiscriminado dos possíveis concessionários.
A produção audiovisual do novo disco traz consigo uma personagem que remete à preservação da fauna nativa e do meio ambiente. Os videoclipes musicais e um curta produzidos para divulgação do disco introduzem ao fã o mascote animado em stop motion, o sapo Concho, que possui características de uma espécie de sapo ameaçada de extinção e é somente encontrada em Porto Rico e nas Ilhas Virgens. O sapinho aparece de forma antropomorfa, possui diálogos e personalidade. Aparece contracenando com um senhorzinho no curta promocional acima, em que ambos estão experienciando uma Porto Rico diferente do passado e estão vendo registros fotográficos com o intuito de resgatar boas recordações. O senhorzinho é interpretado pelo artista e diretor de filmes mais influente de Porto Rico, Jacobo Morales. Dá-se a entender que ele toma como papel o próprio Bad Bunny, já mais velho. Jacobo também aparece em clipes musicais, como em “BAILE INoLVIDABLE” (Dança Inesquecível).
No curta, o senhorzinho dialoga com o sapinho Concho sobre Porto Rico, e o vídeo se inicia com a premissa de que a ilha “ainda tem uma magia incrível”. O curta é um retrato sensível e crítico das mudanças culturais em Porto Rico por meio de uma narrativa carregada de simbolismos. Em um dos momentos icônicos, o senhorzinho interage com uma Porto Rico imersa na cultura estadounidense, com um som ambiente que varia de músicas do “rock pesado” ao “country” (canções em língua inglesa), pessoas que só parecem se comunicar inglês nas ruas, cenários cuja estética remete à urbanidade estadounidense e estabelecimentos comerciais que só se comunicam visualmente e verbalmente em inglês. Já em uma padaria, que tradicionalmente faz a compra de seu lanche, por vezes o senhorzinho é incompreendido, e se depara com opções gastronômicas que não lhe parecem fazer sentido, como um “Cheeseless quesito” (quesito sem queijo) e a falta do tradicional “queso de papa” (queijo do papa). A cena da padaria se encerra com o senhorzinho tendo dificuldades para pagar o seu lanche, que agora só aceita o modo Cashless (pagamento via smartphones). O lanche é então pago por uma pessoa que se compadece da situação e termina dizendo a forte frase “Ainda estamos aqui”. O vídeo mostra, não só um conflito geracional, mas as características da nova geração que absorveu completamente a linguagem de fora, e parecem não mais existir no ambiente que lhes é atribuída a identidade.
La alegoría del ‘quesito sin queso’ con un ‘Puerto Rico sin puertorriqueños’. Todo un poeta. Gracias Benito [Bad Bunny] y gracias a todo tu equipo por tan importante mensaje.
— Comentário2 de @riveranazario no curta “BAD BUNNY – DeBÍ TiRAR MáS FOToS (Short Film)” lançado 03 de janeiro de 2025.
O “portoriquenhês” assim como o nosso “brasileirês”

Como o leitor que chegou até aqui deve ter percebido, o título deste texto é uma referência à estética provocativa do disco “DeBÍ TiRAR MáS FOTOs”. Bad Bunny promove deliberadamente uma desconfiguração da gramática espanhola, e também cria versões em portoriquenhês para palavras inglesas. — A língua, como ela é viva, registra assim um novo nome de batismo para Nova York. Ou deveria dizer, “NUEVAYoL”? — O vocabulário de ilha, tal como o daqui, é bombardeado constantemente com estrangeirismos anglicanos. Passamos a usar call, briefing, feedback, com uma suposta desculpa de “economizar tempo” ou corrigir uma “falta de termos locais mais precisos”.
Não só com o idioma anglicano o Bad Bunny parece brincar, mas também com o espanhol, que é idioma principal da ilha. Títulos do álbum como “WELTiTA”, “NUEVAYoL” e “VeLDÁ” remetem a forma em que as palavras “Vueltita”, “Nueva York” e “Verdad”, respectivamente, são pronunciadas pelo povo porto-riquenho. Algo que, se feito com o português aqui, deixaria os ex-colonizadores e os vira-latas do purismo gramatical de cabelo em pé. Mais do que uma aparente brincadeira, a semiótica, aliada à estética que alterna a caixa das letras nos títulos, dá a luz a uma resistência sutil à colonização pela formalidade gramatical.
A música “NUEVAYoL” foi recentemente executada no programa SNL da televisão estadounidense. Uma música que se espera falar de Nova York, mas se fala da cultura da imigração latina que faz a cidade pulsar. Na execução imperdível no SNL, Bad Bunny encena a clássica fotografia “Almoço no topo de um arranha-céu”, relembrando a participação dos imigrantes latinos que construíram, e constroem, o país, que tanto contribuiu para a deterioração política dos países do Caribe. “NUEVAYoL” utiliza um sample da música porto-riquenha “Un Verano en Nueva York”, que exalta as atividades festivas da grande metrópole. Em contraste ao sample, que ressalta apenas elementos importantes da cidade, Bad Bunny faz questão de falar apenas da agitação que o povo latino faz no cenário nova iorquino, da presença do seu povo, da música reggaeton e de uma espécie de “colonização invertida”, tal como hoje fazemos com a Guiana Brasileira.
Mais do que tirar fotos
Mais do que tirar fotos para relembrar um passado e não deixar a identidade e a cultura caírem no ostracismo, o álbum parece carregar consigo uma mensagem que já ecoa há anos para os porto-riquenhos, a de independência. Os mais de 120 anos de subserviência injusta à suposta “grande democracia do mundo”, não lhes deram direitos de serem estadounidenses e lhes tiraram tudo que tinham de soberania porto-riquenha. Porto Rico está submetida à governabilidade de Washington DC, mas não tem, por exemplo, direito ao voto para a presidência da nação que a contragosto fazem parte. Simbolicamente, hoje tem-se no governo dos EUA a presidência de Trump, que representa exatamente o expurgo da latinidade do país.
O Brasil ainda se permite ser intensamente colonizado pela cultura estadounidense e, penso que devíamos dar mais valor às ressurgências da cultura da latinoamérica. Acredito que temos de conhecer, por exemplo, a música de Bad Bunny, Calle 13 e Residente, de Porto Rico; Racionais MC’s, Baiana System, Nação Zumbi e Chico Science, do Brasil; Totó la Momposina (Colômbia), Mercedes Sosa (Argentina), Victor Jara (Chile), Omara Portuondo (Cuba), Chavela Vargas (México)… A gente devia estar com a nossa galera, ou melhor, “A GnT DEViA Tá COm A NOSsA gLR”, porque ela é foda!
Leia também:
ARAÚJO, Tarso. “O grito de resistência cultural de Bad Bunny em defesa de Porto Rico”, 2025. Disponível em: <https://leiasemprebrasil.com.br/2025/01/12/o-grito-de-resistencia-cultural-de-bad-bunny-em-defesa-de-porto-rico/>
LOPES, Gabriel V. “Rapper Bad Bunny leva ao mundo a luta por independência de Porto Rico”, 2025. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2025/02/22/rapper-bad-bunny-leva-ao-mundo-a-luta-por-independencia-de-porto-rico/>
- Querem tirar de mim o rio e também a praia
Querem o meu bairro e que a minha vovozinha vá embora
Não, não solte a bandeira nem esqueça o lelolai
Porque eu não quero que façam contigo o que fizeram com o Havaí — Tradução do trecho da música LO QUE LE PASÓ A HAWAii ↩︎ - A alegoria do “quesito sem queijo” com um “Porto Rico sem porto-riquenhos”. Um verdadeiro poeta. Obrigado, Benito [Bad Bunny], e obrigado a toda a sua equipe por uma mensagem tão importante. — tradução do comentário de @riveranazario ↩︎