A seguir publicamos um prefácio que Ida Mett escreveu para seu livro – A Comuna de Kronsdat – em 1970. Escrito no momento em que a União Soviética passava pelo período de desestalinização, a anarquista russa retoma e atualiza as discussões sobre a insurreição levada a cabo pelos marinheiros de Kronsdat, entre 01 e 16 de março de 1921. Para a autora, as reivindicações dos insurretos em prol de uma ampla e irrestrita participação da base operária na construção do socialismo permanecem de uma extrema atualidade, ainda que eles tenham sido duramente reprimidos pelo governo bolchevique.
O prefácio em questão foi publicado no livro A Comuna de Kronsdat, lançado pelas editoras Entremares e Faísca, no ano de 2021, quando se rememorou o centenário daquele importante evento.
A tradução do inglês para o português é de Ivan Thomaz Oliveira.
Por Ida Mett
A presente obra, concernente à insurreição de Kronstadt, em 1921, foi escrita em Paris, na época dos famosos Processos de Moscou, que nos levam ao começo dos anos 1930-1940, às vésperas da II Guerra Mundial. Seria publicada por um grupo de sindicalistas franceses que editavam uma revista mensal que aparece hoje com o título de La Révolution Proletarienne. Naquela época, um dos membros mais antigos e respeitados deste grupo era Pierre Monatte, que, em seu tempo, foi um dos militantes mais conhecidos da antiga Confederação Geral do Trabalho, criada em 1898. Pois bem, eis que Pierre Monatte, que havia conhecido Leon Trotsky na época da I Guerra Mundial e que mantinha uma relação de amizade com ele, considerou que a autora da obra concernente à insurreição de Kronstadt desenvolvia uma polêmica áspera demais contra Trotsky.
Este tinha sido obrigado a emigrar para longe das fronteiras da URSS e era perseguido não só por Stalin, como também pela burguesia de numerosos países. Por outro lado, foi nesse momento em que Trotsky disse que vivia em um “planeta sem visto”. Realmente muitos países sofriam pressão da diplomacia stalinista e negavam, um após o outro, o direito de asilo a Trotsky. Mas a autora da obra em questão não havia considerado, e continua sem considerar, que Leon Trotsky seja a principal pessoa responsável pela aniquilação de Kronstadt. Como mostra o texto que segue, esta responsabilidade cabe principalmente à vontade e insistência de Lenin, sem a qual não se tomava nenhuma decisão importante.
No entanto, no momento em que o texto foi escrito, Lenin já não estava mais vivo. Enquanto Trotsky estava no exterior. As publicações que dirigia e influenciava se encarregaram da tarefa ingrata e carente de grandeza de justificar a debelação sangrenta da sublevação. Por conta disso é que parecia que a polêmica não se dirigia a ninguém além de Trotsky e os trotskistas. Mas, seja como for, o grupo La Révolution Proletarienne não quis editar o manuscrito que havia sido preparado para ele e que milagrosamente foi preservado durante a guerra. Foi publicado em francês pela primeira vez em 1948, pelo Cahiers Spartacus com o título de A Comuna de Kronstadt.
Entre a edição francesa e italiana da presente obra passaram-se cerca de quinze anos. Período marcado pela desaparição de Stalin e a divulgação, diante de todo o mundo, de seus atos tirânicos e sangrentos. A geração dos jovens soviéticos que entraram no cenário histórico depois desta desaparição chegou à conclusão de que seus pais, ao submeterem-se voluntária ou involuntariamente ao regime da ditadura totalitária. Em vez de edificar o socialismo, construíram uma sociedade extremamente estratificada e hierarquizada, extremamente necessitada de espírito igualitário. Mas não se pode dizer com a mesma segurança que esta mesma jovem geração tenha conseguido compreender adequadamente que a sociedade pós-Stalinista possa, ainda que apenas parcialmente, corrigir-se pelo impulso da base. Com efeito, por um lado, no que concerne ao proletariado e à estatização completa dos sindicatos operários realizada por recomendação e sob a direção de Lenin e Trotsky, o controle pela base se tornou impossível. Por outro lado, os koljoses foram concebidos, desde o começo de sua existência, sobre as bases de uma exploração implacável dos camponeses. Sua subordinação incondicional ao Estado e ao partido dominante tornam impossível toda resistência coerente no plano político e econômico do trabalhador campesino.
Quanto à intelectualidade, para que se possa exercer um papel catalisador, como foi o caso dos intelectuais antes da revolução, deve, antes de tudo, recusar a própria ideia de subordinação do pensamento às ordens determinantes do partido e do Estado. Esta concepção deve ser introduzida nos fundamentos da sociedade moldada por cinquenta anos de ditadura totalitária. Os intelectuais que declaram do alto de suas tribunas, inclusive na poesia, que 1937 (o ano do apogeu do terror stalinista) não voltará a se repetir, deveriam agir de modo que no campo da reflexão também não possa haver retorno a esse terrível passado. Sem isso, todas as suas declamações se tornarão vãs e estéreis.
A morte do ditador permitiu a divulgação de seus crimes diante do mundo todo. Esta denúncia não é suficiente para satisfazer nossos sentimentos de verdadeira reparação histórica. Não dará a possibilidade da sociedade pós-stalinista renovar-se. Os meios que fariam possível um processo de reparação não existem no presente momento. Modificar o estado de coisas demanda novos esforços para criar órgãos de reconstrução e de luta. Sem dúvida, isso era o que pensavam os marinheiros de Kronstadt há cinquenta anos, quando queriam devolver aos comitês de base seu poder de decisão. Mas quem poderia, no atual momento, levantar a bandeira desta luta indispensável?
Alguns sinais permitem considerar que este papel poderia ser o destino dos novos espaços proletários. Neles há, por força das circunstâncias, numerosos intelectuais. Mas desde já, é possível dizer que essa luta será longa, dura e muito mais difícil do que teria sido se tivesse sido travada ao final da guerra civil. É provável que a Rússia e o mundo tenham que pagar caro por ter seguido o caminho equivocado que Lenin colocou a Revolução Russa outrora.
Por isso, quando vemos os atuais obstáculos que temos que superar para fazer com que a juventude da URSS conheça nossas intenções, nos damos conta da dificuldade da tarefa. Sabemos que até o momento, somente obras mentirosas e infames foram autorizadas para descrever a insurreição de Kronstadt. Falamos do romance de Nicolás Chukovsky intitulada A Prisão Marítima, nas abordagens em cursos escolares ou na obra de teatro de Alexander Stein intitulada Entre Dois Aguaceiros. De fato, 50 anos se passaram desde o levante. Não é hora de deter as mentiras repugnantes destinadas a difamar os marinheiros revolucionários e perdoar seus assassinos? Não é hora dos jovens da URSS conhecerem de uma vez por todas o que os marinheiros buscavam conquistar para todo o país, não só para eles? É necessário que meio século depois se possa compreender quem tinha razão, os marinheiros ou o Partido Comunista Russo, com a liderança de Lenin e sua escolha de caminho para a revolução.
Então o que queriam os marinheiros de Kronstadt? Suas reivindicações não têm um aspecto atual, inclusive hoje, não só para a URSS, como também para todos os países em que se consolidou uma ditadura de partido único? Vejamos rapidamente o que os trabalhadores checoslovacos buscavam conquistar em 1968. Lutaram contra a ditadura do partido único que, inexoravelmente, abre caminho para a burocratização e a ausência de controle por parte das massas populares. Isso já era sabido em Kronstadt em 1921. Isso era nítido já no quarto aniversário da ditadura do partido único. Eles se esforçavam em fazer correções nessa anomalia. Depois de vinte anos de ditadura de partido único, os trabalhadores da Checoslováquia compreenderam que a liberdade de pensamento e de palavra é indispensável para poder aplicar a democracia na prática e defendem essas reivindicações com meios próprios. Os marinheiros de Kronstadt também tinham compreendido isso cinquenta anos antes. Fizeram uso desta noção com grande prudência. Exigiam liberdade de palavra e de pensamento só para os trabalhadores, temendo que estas reivindicações fossem utilizadas por certos elementos não trabalhadores da sociedade que tinham sido vencidos há pouco. Mereciam ser execrados por conta desta reivindicação não só legítima, como indispensável? Entretanto, este foi o motivo utilizado para qualificá-los como rebeldes e mobilizar as forças do Exército Vermelho contra eles.
Isso aconteceu há cinquenta anos. Os marinheiros de Kronstadt, vindos em sua maioria da classe trabalhadora do campo, reivindicavam o direito dos camponeses de cultivar suas terras sem recorrer ao trabalho assalariado. A coletivização das aldeias, realizada de maneira “stalinista”, por meio da coerção, fazendo milhões de vítimas, destruindo tradições camponesas seculares, um regime que nega qualquer direito ao campesinato, prova que o instinto social dos kronstadtinos pressentia as desgraças futuras. Com uma fé ingênua, sonhavam defender a sua classe, protegendo-a com seus próprios corpos e se colocaram em luta. Suas demandas permanecem atuais até hoje. Chegará um momento em que a ditadura da burocracia do partido se afundará. Todas as reivindicações dos marinheiros de Kronstadt voltarão à ordem do dia. É por isso que é importante que a juventude da URSS conheça por que lutaram e pereceram heroicamente os marinheiros revolucionários de Kronstadt.