Feminismo e Anarquismo no Brasil: concepção pela experiência

Por Eloísa Benvenutti de Andrade

Habitualmente, quando falamos de perspectivas revolucionárias teóricas que almejam o socialismo, existe certo purismo em seus fundamentos. Diferente disso, a fundação do projeto e da prática anarquista possui seu alicerce na perspectiva ética da realidade, o que faz com que a doutrina anarquista não se limite à uma simples projeção de uma realidade futura. Se assim o fosse, seu porvir seria resultante de uma base moral fixa capaz por si só de alavancar o socialismo libertário. Esse não é o caso da construção do anarquismo.

Pelo contrário, o aspecto embrionário da perspectiva anarquista encontra-se num aspecto importante do Iluminismo, a saber, quando a inédita possibilidade de mobilidade social fez com que, ao menos teoricamente, todo e qualquer indivíduo fosse admitido como sujeito de razão. Isso significou que, a partir desse momento histórico, qualquer indivíduo seria entendido como capaz de pensar racionalmente e, por conseguinte, como capaz de fazer um discurso sobre si e um discurso sobre o mundo.

Nesse contexto é que o anarquismo adota uma concepção radical da existência, pois sua premissa concreta é a de que o ser humano, enquanto sujeito, é capaz de pensar radicalmente sua condição de vida, e, por sua vez, criticá-la e transformá-la. Portanto, o anarquismo é um projeto forjado nas condições e experiências concretas de vida dos sujeitos no mundo, e não sob condições abstratas e hipotéticas da realidade. Em sua origem, sua obstinação libertária não é delegada ao “outro”. Diferente disso, os anarquistas e as anarquistas se compreendem enquanto sujeitos em luta contra uma hierarquia coercitiva que aliena o poder do povo e do sujeito. Por conseguinte, cria barreiras à emancipação e à consolidação do poder popular, que é, entretanto, o tempo todo, factível nas experiências dos sujeitos.

Esta hierarquia coercitiva pode ser compreendida como a expressão da relação de comando e obediência que hierarquiza as diferenças que constituem o coletivo, como raça, classe e gênero, e que se realiza no que podemos chamar de cadeia de opressões. Nesse sentido, o anarquismo é um projeto que questiona a ideia de natureza humana construída à luz de abordagens teóricas, como dito acima, puristas da realidade política e social.

O questionamento libertário ocorre, justamente, em prol da reflexão crítica e permanente acerca das contradições do mundo, reforçando, assim, uma perspectiva enraizada em uma dimensão materialista do real. Por isso, o anarquismo não é um projeto estético. Isso quer dizer que existir no mundo, de acordo com seu propósito, não é algo que se realiza expressando-se apenas esteticamente. Portanto, a doutrina e a prática anarquista não resultam de um “estilo de vida” ou de um puro “ativismo”. Diferente disso, a concepção anarquista é, sobretudo, ética e funda-se em, ao menos, dois elementos importantes para a compreensão da realidade. Estes elementos nos ajudarão a tecer um breve comentário sobre a relação entre anarquismo e feminismo focando nas experiências das lutas brasileiras no início do século XX. Tais elementos, a saber, são o poder e o classismo.

A especificidade da presença destes dois elementos na história do anarquismo é que ambos são concebidos de forma inédita e radical. A singularidade do primeiro elemento é que, para os anarquistas, o poder não existe apenas como dominação, mas é algo presente e expresso por todo indivíduo, que está, entretanto, constantemente alienado dele pelas opressões que ele sofre. Já a peculiaridade do segundo elemento é que sua compreensão classista se opõe à ideia habitual de natureza humana supracitada, oferecendo assim, uma perspectiva também classista da natureza.

Isso é importante pois duas sentenças fundamentais em seu projeto decorrem justamente dessa sua abordagem original e revolucionária.

A primeira sentença refere-se ao fato de que a perspectiva anarquista de emancipação é individual e coletiva. Isso significa que ela – a emancipação – não acontece apenas na dimensão privada, mas na dimensão pública do sujeito em sociedade.

A segunda, é que, no entanto, a responsabilidade do sujeito é coletiva, mas também não deixa de ser individual. Isso significa que ela é, na verdade, uma autorresponsabilidade contra as opressões. Ainda nesse contexto, é importante dizer que essas sentenças devem ser compreendidas dentro de um universo de contradições em que, por vezes, somos também nosso próprio inimigo, uma vez que todos estamos submetidos cotidianamente à tutela das instituições, e por conseguinte, às suas demandas, seus valores e seus conceitos.

Disso concebido, é que se esboça o objetivo da revolução socialista pela perspectiva libertária e a perspectiva feminista anarquista de emancipação social. Sua característica central é que sua finalidade não aparecerá no horizonte sem qualquer mediação:  a hierarquia coercitiva – que mantém as contradições e opressões e hierarquiza as diferenças entre raça, classe e gênero – só será efetivamente derrubada pela prática cotidiana dos princípios anarquistas. Princípios como o anticlerical, o antimilitarista, o anticapitalista, o antinacionalista, a ação direta, a auto-organização e o antiautoritarismo. São esses princípios que forjam para as anarquistas a perspectiva libertária de luta. Os princípios anarquistas, portanto, visam a destruição da hierarquia coercitiva fundada na ideia do poder enquanto dominação. Nesse sentido, não se pode apostar no ativismo de um ou outro sujeito que detém o protagonismo e o saber no processo revolucionário. Enquanto anarquistas, não podemos estar nem à frente e nem atrás, mas caminhando ao lado dos de baixo.

Destaca-se nesse universo de princípios o sindicalismo revolucionário no Brasil, concepção forjada em 1906 e que contribui para a construção da Greve Geral de 1917. Nela, cerca de 70.000 pessoas, dentre homens, mulheres e crianças, se mobilizaram incialmente na cidade de São Paulo por melhores condições de vida e de trabalho. Para se ter uma dimensão da grandeza dessa histórica mobilização nota-se que a população de São Paulo contava com 400.000 habitantes na época. A greve, levada a cabo pela forte influência dos anarquistas, foi uma das maiores expressões de mobilização operária da história da cidade de São Paulo e teve consequências em movimentos insurrecionais anarquistas no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. O epicentro deu-se no Cotonifício Crespi – uma indústria têxtil no bairro da Mooca – com a paralisação de cerca de 400 pessoas, na maioria mulheres e crianças, que tinha como pauta melhores salários e o fim do trabalho noturno.

Oposto ao sindicalismo reformista e hierárquico (conhecido no Brasil como sindicalismo amarelo), o sindicalismo revolucionário buscou criar e impulsionar uma cultura de classe, por meio da construção de um espaço de aproximação entre os trabalhadores que não visasse terceirizar a luta. Nesse sentido, tal perspectiva libertária visou construir uma noção revolucionária, com referências de organizações capazes de compreender o sindicalismo nas relações de luta de classe. Isso quer dizer compreendê-lo dentro do local de trabalho, com suas especificidades e contradições, e não como um espaço físico único e restrito tal como uma sede. Pelo contrário, a concepção do sindicalismo revolucionário estruturado pelos anarquistas neste momento buscou compreender a realidade concreta, tendo, por um lado, os trabalhadores organizados como um todo, e, por outro, a perspectiva revolucionária, que compreende a classe dominante como força de dominação que aliena o poder dos trabalhadores. Nota-se que uma subordinação alienante, nos dias de hoje, por vezes, é imposta pela burocracia sindical aos movimentos e às oposições. Essa prática culmina na concepção da base mobilizada como massa de manobra.

Dentro da perspectiva anarquista de autorresponsabilidade, que atrela a dimensão privada e pública, individual e coletiva, as mulheres anarquistas no Brasil tiveram, desde o início, uma grande contribuição na identificação do feminino na constituição do pensamento feminista como autônomo, quer dizer, como um pensamento não tutelado e crítico a ideia de uma “natureza humana” da qual não conseguimos nos destituir. Elas impulsionaram greves por meio de métodos e princípios preconizados por anarquistas históricos e destacaram-se por isso. Em meio a uma classe operária absolutamente diversa – oriunda dos processos de abolição da escravidão, imigração, da guerra e da ilegalidade e marginalidade que compunham o espaço urbano – na luta forjada na esperança de uma vida melhor, as mulheres anarquistas obtiveram protagonismo no Brasil. Suas exigências de melhores condições de trabalho, redução de jornada e a revolta contra salários desiguais também foram conduzidas em meio às questões sobre religião, controle de natalidade, educação e emancipação intelectual da mulher. Mulher essa, vale lembrar, que era submetida a uma jornada de trabalho regular de quase 16 horas e permeada de acidentes de trabalho que ocasionavam a elas mutilações.

Por vezes, com nomes de homens, pseudônimos ou assinando apenas suas iniciais, por conta tanto da repressão, como da dominação masculina nos ambientes públicos e privados, elas escreveram na imprensa anarquista refletindo sobre suas questões próprias e seu horizonte libertário e revolucionário. Por vezes tratadas como loucas e histéricas, o fato é que este horizonte libertário, e, portanto, contrário à generalidade mítica construída sobre a mulher, impulsionou a perspectiva do gênero como produzido no campo da cultura, e não como dado biológico ou destino. O gênero, portanto, passou a ser entendido como fruto da historicidade, ou seja, da situação da mulher e de suas condições.

Pelas anarquistas, a “questão da mulher” foi alocada na vida política e não mais na vida natural, que a destituía do seu próprio corpo. Isso foi importante, pois impulsionou a perspectiva feminista enquanto um movimento contextualizado. O contexto era (e é) de opressão, sexismo e exploração. Sendo assim, o feminismo anarquista e libertário, no Brasil, foi cunhado como um projeto ético-político, radical e revolucionário, pela admissão da necessidade de independência física e material – independência do tripé “tanque, cozinha, e cama” – que mantinha a mulher dependente do homem e na condição de serva sexual dele.

Mobilização na Fábrica têxtil Cotonifício Crespi em São Paulo. Início da Greve Geral de 1917 que depois alastrou-se por diversos bairros da cidade e cidades no interior do estado. Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth | Unicamp
Mobilização na Fábrica têxtil Cotonifício Crespi em São Paulo. Início da Greve Geral de 1917 que depois alastrou-se por diversos bairros da cidade e cidades no interior do estado. Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth | Unicamp

Essa condição de dominação era historicamente exercida tanto pela Igreja como pelo Estado, que controlavam a mente e o corpo da mulher pelo casamento, pela natalidade impositiva, por sua domesticação, seja como mãe de família, empregada, enfermeira, doméstica etc. As anarquistas no Brasil perceberam desde sempre essa relação de dominação por parte da Igreja e do Estado sobre os trabalhadores, mas, sobretudo, à mulher. Por isso, qualquer processo revolucionário passa, para as anarquistas, necessariamente, pela libertação da mulher e do feminino. No jornal anarquista A Plebe, lançado na cidade de São Paulo em 1917, a colaboradora e militante anarquista Theresa Escobar escreveu:

(…) Transformemos os conventos e templos em oficinas profissionais e atiremos essa corja de criminosos (padres e freiras), esses assassinos da liberdade de consciência para qualquer ponto onde não possam fazer mal e em troca sejam úteis a seus semelhantes. Basta de infâmias, basta de tolerâncias. Clareou o momento de arrancarmos a mulher da escravidão imposta pelo egoísmo nefasto dos verdadeiros vampiros sociais. Dia virá em que ser cristão será tão ridículo quanto oprobrioso é possuir fama de ladrão! Não está muito longe, amigos, basta só um pouco de audácia e mais constância e muita coadjuvação das patriotas conscientes. Viva a liberdade e morra o clero! (Eis o ideal almejado!. THERESA ESCOBAR. A Plebe, São Paulo, 22 de março de 1919,citada por MENDES, 2021, p.270).

A postura anticlerical era comum entre várias anarquistas que escreviam em jornais como “A Plebe”. Para elas, a crítica a Igreja Católica era tão importante quanto a crítica necessária aos políticos e ao governo republicano. 

Um nome importante desse tipo de crítica foi Isabel Cerruti, militante anarquista ítalo-brasileira. É sabido, graças à pesquisa de Samantha Colhado Mendes (2021, p.277), que, assinando seus textos como Iza Rutt, ela afirmava que “o que os padres faziam era enganar os operários e fazê-los confiar que a solução para a sua vida sofrida de altas jornadas e baixos salários estava no cristianismo” . Desse modo, Isabel Cerruti denunciava a postura de obediência imposta pela Igreja Católica sob o pretexto de se alcançar o reino dos céus enquanto não havia pela mesma incentivo a luta diária contra a exploração.

Outro nome importante da postura anticlerical anarquista era o de Maria Lacerda de Moura, que, nascida em Minas Gerais, faleceu em 1945 na cidade do Rio de Janeiro. A socióloga Miriam Moreira Leite (1984, p. 102) nos relata que Maria Lacerda lá escreveu: “[…] casada, solteira ou viúva, a mulher é escrava do salário, do pai, do marido, patrão, diretor espiritual ou sociedade. ”

Ainda de acordo com a perspectiva feminista da escritora e anarquista:

Enquanto não pensar, em vão tentaremos quebrar os grilhões para a nossa independência individual; a mulher é escrava; dependente do salário, do homem, do seu capital. Assim é impossível a libertação. Seu cérebro foi considerado infantil pelo egoísmo masculino dos ancestrais. […] A brasileira ardente, altiva, inteligente, idealista, generosa, num impulso final, por entre relâmpagos da consciência adormecida, perceberá. E a sua dedicação eloquente completará a obra magnífica. Faltam-nos escolas. Faltam-nos educadores na acepção mais ampla da expressão. Fazê-los nascer deste mesmo povo – eis o que é preciso. (MOURA, 1922, citada por LEITE, 1984, p.20)

Nesse sentido, para Maria Lacerda de Moura, a iniciativa anticlerical, aliada à educação racional e científica, tanto para homens como para as mulheres, era, por excelência, o principal instrumento para a liberdade. A escritora denunciava que o modelo escolar da época era o grande inimigo na construção de uma civilização livre. Desse modo, era em boa parte responsável por perpetuar a escravidão feminina. (MOURA, citada por: LEITE, 1984, p. 79 e 81). Por isso, a educação feminina e a emancipação intelectual das mulheres era tão importante quanto a emancipação política para a libertação total e a construção da autonomia de fato. Sobre o feminismo branco e burguês da época, ela tece o seguinte diagnóstico:

Cheguei à conclusão de que o meio é associar-se, não é a união das mulheres pela defesa dos seus direitos, que elas confundem com velharias e cumplicidades reacionárias. Ao falar em direitos só lhes ocorre o voto, o qual deveria ter sido reivindicado há cem anos atrás… Agora, já não é mais de votos que precisamos e sim de derrubar o sistema hipócrita, carcomido, das representações parlamentares escolhidas pelos pseudo-representantes do povo, sob a capa mentirosa do sufrágio, uma burla como todas as burlas dos nossos sistemas governamentais, uma superstição como tantas outras superstições arcaicas. (MOURA, citada por MENDES, 2021, p.248).

Maria Lacerda de Moura, pioneira no antifascismo e anarcofeminismo no Brasil, escreveu “A mulher é uma degenerada”, livro originalmente publicado em 1924 (Foto: Reprodução Internet)

Finalizando este comentário, é importante reiterar que é possível observar, por meio das experiências e dos escritos do início do século XX, no Brasil, que a perspectiva das mulheres anarquistas, enquanto envoltas num projeto ético político-revolucionário, parte de uma determinada realidade concreta, realidade que atravessa as questões de classe, raça e gênero.

Sendo assim, esse olhar enfatiza o caráter constitutivo do feminino e do feminismo no socialismo libertário. Por isso, atualmente, tem-se a compreensão, por meio dessa concepção libertária, que não basta em uma organização política apenas a encampação de um espaço físico para as mulheres – uma “Secretaria da mulher” ou algo do tipo. Deve-se prezar pela troca de saberes e experiências entre os trabalhadores e as trabalhadoras como prática cotidiana, ou seja, como princípio para a emancipação e libertação total. Caso contrário, reforça-se apenas a dualidade tradicional entre corpo e pensamento, em que é delegado exclusivamente ao homem o lugar do pensamento e à mulher o do corpo – corpo esse a ser admirado, tratado como acessório, como coisa e alocado num espaço físico – Essa discriminação sustenta, dessa maneira, a crença de que a mulher é incapaz de pensar racionalmente, condenando-a, mesmo diante da sua presença, à falta no cotidiano. Essa perspectiva mantém a lógica e o lugar de dominação em que se existe sobre o outro e não com o outro, tampouco como o outro em suas diferenças.

A análise de conjuntura forjada pelas anarquistas, desde sempre na compreensão da prática dos princípios – como a auto-organização, a ação direta, a postura anticlerical, anticapitalista, antirracista e de apoio mútuo e solidariedade de classe – permite a construção de um projeto revolucionário capaz de efetivar uma vida sob a ótica do socialismo libertário. Sendo assim, é pela condição específica da mulher trabalhadora como estrutura na relação de dominação, mas também como estruturante do processo revolucionário, que se sustenta a perspectiva feminista anarquista, sobretudo comprometida para que não se afaste os trabalhadores e as trabalhadoras da revolução e da libertação individual e coletiva.

Bibliografia:

CORRÊA, F. Bandeira Negra: Rediscutindo o Anarquismo. Curitiba: Editora Prismas, 2015

 ______. “Anarquismo, poder, classe e transformação social”. Em Debat: Florianópolis, n. 8, p. 69-89, jul-dez, 2012.

LEITE, M. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. SP: Ática, 1984.
MENDES, S. “As mulheres anarquistas no Brasil (1900-1930): entre os esquecimentos e as resistências”. Revista Espaço Acadêmico, n 210, p. 63-75, nov., 2018a.

 ______. Anarquismo e Feminismo: As mulheres libertárias no Brasil (1900-1930). Editora Prismas, p.173-205, 2018b.

______. Companheiras: Mulheres Anarquistas em São Paulo (1889-1930). São Paulo: Editora Faísca, 2021.

MOURA, M. L. de. A mulher é uma degenerada. São Paulo. Tenda de livros, 2018.

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