Em novembro de 2021, Don L, nome artístico de Gabriel Linhares da Rocha, lançou o álbum Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2, a segunda parte de uma trilogia reversa que começou em 2017 com Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3.
O fortalezense faz referência, nos nomes dos álbuns, ao diretor de cinema Karim Aïnouz, também de Fortaleza. No segundo volume de sua trilogia, Don L traz um álbum cheio de referências revolucionárias divididas em três tempos históricos distintos: o passado colonial brasileiro; o presente, com a cidade de São Paulo como plano de fundo; e um Brasil pós-revolução.
O álbum traz referências à figuras históricas importantes para a luta dos de baixo, como Carlos Marighella, Che Guevara, Thomas Sankara, Assata Shakur, Tupac Amaru II, Micaela Bastidas, Lenin, Celia Sanchez, Frida Kahlo, Mao Tsé-Tung, Malcom X, Amaro Luiz de Carvalho, Manoel Aleixo da Silva, Ajuricaba, Jean Jacques Dessalines, cacique Piquerobi, Dandara dos Palmares, Leila Khaled, Marielle Franco, Kim Jong-un, subcomandante Marcos, Comandanta Ramona, Galanga Chico Rei, Ho Chi Minh, Kim Il-sung e os vietcongs, além de citar Canudos, Palmares e Rojava.
Uma das características marcantes do álbum é a disputa pelo cristianismo e a ressignificação das falas do Pastor Júnior Trovão. A primeira faixa do álbum é um interlúdio que traz um sample da pregação do pastor:
Você tem que entender que enquanto você não for capaz de contar a sua história, sua história vai virar uma piada na boca do Diabo, sua história vai virar uma peça teatral, pro Diabo apresentar e fazer você chorar. Agora, o dia que você fizer as pazes, e contar: – E morreu? – Eu morri mesmo. Mas você tem que lembrar: o terceiro dia, eu ressuscitei, eu vivo, é a minha história, eu carrego ela. Quem tá me entendendo levanta a mão abre a boca e dá o glória da vitória!
No segundo interlúdio, faixa 10 do álbum, ainda sampleando o pastor, podemos perceber a disputa pelo discurso, ressignificando-o:
E o diabo talvez disse: “sua história já teve um ponto final”. É mentira! Porque não é ele quem tá escrevendo a história, não é ele quem pode terminar a história.
O álbum ainda conta com um terceiro interlúdio com as palavras do pastor: “o que você tem feito com a sua história?” Na 12º faixa do álbum, “Auri sacra fames”, há outra citação:
Mas essa tarde, é pra valer! Eu assumo a aliança! Porque eu sei que de hoje em diante, eu farei aquilo que tem que ser feito! Tem alguém me ouvindo?
Nesses interlúdios podemos notar a ressignificação das falas do pastor, trazendo o discurso cristão ao contexto de disputa da história dos povos marginalizados. Podemos interpretar o diabo citado como referência às elites brasileiras que narraram a história de seus pontos de vista, apagando dos registros as versões dos derrotados. Além disso, podemos interpretar as falas do pastor no sentido de admitir que, enquanto grupos marginalizados pelo sistema dominante, tivemos muitas derrotas, mas que, reivindicando nossa história, podemos “ressuscitar” e chegar até o dia do “glória da vitória”.
Além dos interlúdios, a terceira faixa do álbum, “pânico de nada”, é cheia de trechos de falas do pastor:
Mas é também o momento de / luta pra todo lado / primeiro passo, irmãos, primeiro passo / a cidade, olha a altura dos muros! / e agora, pastor, como é que eu posso… / o que eu tenho que fazer pra viver a promessa? / viver a promessa… / bate no ombro do seu irmão e diga, pra viver a promessa… / pastor onde tá o ouro aí? / como disse Josué, como disse Calebe, eeeeyaaaaaa…
Essa música narra a tomada violenta do poder pelo povo, em um movimento revolucionário de luta armada. Os trechos retirados da pregação do pastor são ressignificados para esse contexto. Para Don L, a organização, a luta e a tomada violenta do poder pelo povo são as formas de “viver a promessa”. Só assim poderíamos viver na terra que foi prometida a Josué e a Calebe.
Além da ressignificação das falas do pastor, o álbum traz, especialmente na segunda faixa, “vila rica”, que conta com a participação de Mateus Fazeno Rock, uma ressignificação de Jesus, o colocando em território de disputa.
Já fomos quilombos e cidades, Canudos e Palmares, originais e originários. Depois do massacre, ergueram catedrais, uma capela em cada povoado, como se a questão fosse guerra ou paz. Mas sempre foi guerra ou ser devorado, devoto catequizado, crucificar em nome do crucificado. Sseu Deus é o tal metal, é o capital, é terra banhada a sangue escravizado, Jesus nunca estaria do seu lado, não estaria do seu lado, Jesus não estaria do seu lado. Faria mais sentido estar comigo. Jesus não estaria do seu lado. Faria e faz comigo a justiça
[…]
E ainda virá uma revolução, eu juro pela fé do seu Cristo, um chumbo no peito que leva o crucifixo (plow! Aleluia!)
[…]
Eu taquei fogo numa carruagem, tomei a cruz do peito a céu aberto e pus jesus do lado certo
O plano de fundo dessa faixa é o Brasil colonial, onde Don L reivindica para si a personificação de um sertanejo que entra em combate direto com sertanistas e “soldados do rei gringo”. Podemos notar no trecho destacado a contestação na contradição entre a fé dos colonizadores e suas atitudes. A fé no crucificado era usada para justificar a “crucificação” de outros povos. Além disso, podemos identificar a reivindicação dessa fé e a narrativa de que faria mais sentido o deus dos colonizadores estar do lado dos povos colonizados.
A obra de Don L nos leva a uma viagem a um passado ressignificado e a um futuro idealizado. Nos faz reivindicar nossa história e, apesar do contínuo distanciamento do horizonte revolucionário, nos permite “dilatar o tempo e imaginar um mundo novo”.