Na data em que se rememora os 145 anos do nascimento de Neno Vasco, o Patos à Esquerda publica o texto “Neno Vasco: sobre o inventário de uma vida e as lacunas de toda uma existência”, de autoria de Alexandre Samis. Nele, o autor tece importantes reflexões a respeito da recepção da obra do anarquista no Brasil e em Portugal, países onde viveu e militou em grande parte de sua breve, ainda que intensa, vida. O presente texto foi originalmente publicado como posfácio ao livro Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista, de autoria de Thiago Lemos Silva, publicado em 2023, pela Editora Cancioneiro.
Por Alexandre Samis
Após a sua morte, em setembro de 1920, a recuperação da memória de Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós e Vasconcelos, ou simplesmente Neno Vasco, como era mais comumente conhecido, não deixaria de receber incontáveis aportes. Quer pelo reconhecimento de seu trabalho mais objetivamente militante, quer pelo exemplo ou mesmo pela constatação da envergadura da sua inestimável obra escrita, não foram poucas as energias mobilizadas para o reconhecimento do seu legado.
Os registros que primeiro lograram inventariar os benefícios da presença de Neno Vasco no movimento anarquista, realizados quase todos no espírito simbiótico que buscava compatibilizar a crônica laudatória com o balanço da sua produção, já reconheciam sua própria incompletude ao depararem-se com a massa colossal deixada pelo autor, depois do seu passamento, tragado pela tuberculose. Os primeiros necrológios deixaram a nítida impressão de que os seus insignes autores muito provavelmente se viram intimidados diante do que foi capaz de realizar o homenageado. Sentiram o peso da “custosa tarefa” ao precisarem deixar, em papel e tinta, mensagens objetivas que, por qualquer descuido, poderiam bem amesquinhar o verdadeiro significado de Neno Vasco para o anarquismo e o sindicalismo.
Por tudo isso, não pode causar espanto terem seguido a estes, outros tantos, historiadores, militantes, jornalistas e amigos longevos, no mesmo propósito. Um propósito que, inopinadamente, encontrará nos textos dos que os antecederam mais desafios que propriamente indícios para um efetivo desfecho. Uma característica, aliás, das mais habituais em textos clássicos.
Entre 1920 e 1921 foram publicadas em Portugal e Brasil algumas importantes homenagens a Neno Vasco. Revezaram-se na tarefa figuras de destaque como: Antônio Alves Pereira, Adelino de Pinho, João Penteado, Pinto Quartim, Alfredo Neves Dias, Adriano Botelho, Francisco de Sousa, Mário Domingos e Manuel Joaquim de Sousa. Foram veículos de publicidade de tais manifestações os periódicos, dos dois lados do Atlântico: A Comuna (Porto), Voz do Povo (Rio de Janeiro), A Plebe (São Paulo) e A Batalha (Lisboa). Todos eles jornais com sólidos e declarados vínculos com o anarquismo e o sindicalismo.
A “secção editorial de A Batalha”, diário da CGT portuguesa, colocará em circulação no ano de 1923[1] o livro Concepção anarquista do sindicalismo de Neno Vasco. Um esforço ao qual se associaria um grupo de entusiastas no Brasil que, sob a auspiciosa colaboração da União dos Operários em Construção Civil (UOCC), teria participado com “a quota correspondente a 50% do custo total da edição” (Lucta Social. Rio de Janeiro, 18 jun. 1922). Uma associação que nos permite, aliás, especular sobre a possibilidade de terem existido até duas edições do livro,[2] uma no Brasil e outra em Portugal, no mesmo período.[3]
A memória de Neno Vasco teria sofrido, na mesma proporção dos anarquistas e sindicalistas revolucionários, grandes prejuízos com a projeção política de uma enorme sombra sobre as iniciativas revolucionárias em Portugal depois de maio de 1926. Um período que se estenderia amargamente até o 25 de Abril de 1974. Um tempo em que tudo o que ele defendera ficava proscrito e até a herança da sua passagem pelo anarquismo experimenta a claustrofóbica condição da clandestinidade. Época na qual tudo se mostrou precário e quase se viu partido o nexo entre o que se fizera e o que era preciso fazer, tal a brutalidade do regime salazarista. Mas, ainda assim, o campo libertário resistiu.
Durante o regime ditatorial (1926-1933), ainda antes da constituição propriamente do Estado Novo português (1933-1974), Neno Vasco seria objeto de distinções, como no suplemento literário ilustrado de A Batalha, de 20 de setembro de 1926, na coluna: “Recordar é viver” e na Revista Aurora, de 13 de setembro de 1930,na coluna “Os homens e as ideias”. No campo mais objetivamente organizativo aparecem igualmente indícios de como foi Neno um vigoroso fio de sutura entre gerações, mesmo em condições adversas. Assim, no início de janeiro de 1943, o Comitê Regional (CR) da Federação Ibérica das Juventudes Libertárias (FIJL), importante órgão do movimento espanhol e português no exílio, federa em sua estrutura de base um grupo que receberia o nome de “Neno Vasco”(GUIMARÃES, 1992, p. 16). Cujo empenho, em associação com outro seu contemporâneo, o “Terra e Liberdade”, seria inestimável para que, nos meses de julho, agosto e setembro, fosse possível publicar, com alguma qualidade gráfica, o periódico do CR da FIJL, Despertar.
Em 1959, o sindicalista Alexandre Vieira não se esqueceria de reservar um generoso espaço para Neno Vasco em seu livro Figuras gradas do movimento social Português, ali tratado como “Dr. Nazianzeno de Vasconcelos”. Talvez por conta dos rigores daquele tempo, ele é qualificado como “Correspondente de Línguas Estrangeiras e Escritor” (VIEIRA, 1959, p.192).
No Brasil, o jornal Ação Direta do Rio de Janeiro, no número de 17 de abril de 1948, publicava textos de Neno Vasco e uma coluna com sua biografia, já em um período de relativa liberdade de opinião. Será possível igualmente encontrar vestígios consistentes da importância do autor e militante em campos dos mais inusitados, como é o caso do Partido Comunista do Brasil que, nos anos de 1940, tinha em sua base de composição no Rio de Janeiro, na “Distrital do Centro”, uma célula batizada pelos seus componentes de “Neno Vasco”.[4] Valendo dizer que os militantes comunistas da referida unidade estavam longe de pertencerem às esferas mais obscuras do partido. Um registro que permite avaliar o prestígio e a estatura da reputação de Neno mesmo em um campo político dos mais hostis ao anarquismo.
Em 1963, Edgard Leuenroth, ao organizar o conjunto de textos para o livro Anarquismo – roteiro de libertação social, no Rio de Janeiro, pela Editora Mundo Livre, não se esqueceria de incluir textos do velho companheiro português. Obra que permanecia atual e com força suficiente para fazer vibrar as fileiras anarquistas onde quer que estivessem representadas no Brasil (LEUENROTH, 1963).
Em Portugal, o veterano libertário Adriano Botelho, ao final do ano de 1974, escrevia em A Ideia, no seu segundo número: “Alguns traços biográficos de Neno Vasco”. Mais que relevante nota biográfica, não apenas pelas informações, como pelas conclusões de Botelho que havia privado com Neno Vasco e Mercedes Moscoso, como frequentador assíduo do lar do casal, nos seus últimos anos de vida de ambos (BOTELHO, 1974).
Uma década depois, as Edições Afrontamento, do Porto, reeditavam o livro Concepção anarquista do sindicalismo. Na edição de 1984, o livro ganhava então um prefácio analítico e biográfico sob os cuidados do sociólogo e historiador João Freire (VASCO, 1984).
Em 1993, o pesquisador e memorialista do anarquismo Edgar Rodrigues finaliza e edita quatro biografias no livro Os Libertários, impresso no Rio de Janeiro pela editora VJR. Compondo o referido conjunto, além do próprio Neno Vasco, estavam Maria Lacerda de Moura, José Oiticica e Fábio Luz.
Em abril de 1980, a Biblioteca Nacional de Portugal recebe um robusto volume documental do Centro de Estudos Libertários (CEL), que seria definitivamente doado à instituição em julho de 1985. Essa transferência de documentos daria origem ao Arquivo Histórico-Social,[5] compreendendo três grandes corpos: o dos espólios individuais de militantes anarquistas, o de documentos pertencentes a instituições operárias e o que teria conseguido recolher o CEL entre 1980 e 1987. A família de Neno Vasco, em particular sua sobrinha, Magda Botelho, contribui com rico material iconográfico e epistolar para o “Núcleo Neno Vasco”, que é, ainda hoje, a principal fonte de informações sobre o anarquista. A Universidade de Évora desenvolveria posteriormente um projeto com parte deste acervo, o “Projeto MOSCA”.
Nas primeiras décadas do século XXI, os estudos sobre Neno Vasco evidenciam-se com inegável vigor no Brasil. Em 2006, é defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) a tese do autor destas laudas: “Minha Pátria é o Mundo Inteiro”: Neno Vasco, o anarquismo e as estratégias sindicais nas primeiras décadas do século XX, mais tarde transformada em livro, publicado em Lisboa (2009), com segunda edição no Brasil (2018). À tese seguir-se-iam outros estudos merecedores de destaque.
A revista Verve, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), de 2007, trará entre seus artigos o de Edgar Rodrigues, “Neno Vasco, Emma Goldman, a Revolução Mexicana de 1910 e a tese de Pietro Ferrua”. Em 2008, Leila M. de Menezes e Lena M. de Menezes, publicam na revista Vozes em Diálogo, do Centro de Educação e Humanidades da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEH/UERJ) o artigo “Em ‘Dezacordo’ com a norma: a ortografia simplificada como estratégia anarquista de luta contra o analfabetismo” (MENEZES; MENEZES, 2008). Nesse mesmo ano, a Tie-Brasil vai editar o livro de Neno Vasco, Concepção anarquista do sindicalismo (VASCO, 2008). A editora Faísca, de São Paulo, em 2011, lança o livro de Felipe Corrêa: Ideologia e Estratégia: anarquismo, movimentos sociais e poder popular, no qual o capítulo “A estratégia de massas de Neno Vasco” realiza um balanço do acúmulo deixado pelo anarquista luso no que concerne à ação sindical.
Finalmente, em 2012, Thiago Lemos Silva apresenta sua dissertação, Fragmentos Biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco, ao Programa de Pós-Graduação em História da UFU. Um primeiro evento que se seguiria a outros de igual propósito, no sentido de verticalizar a investigação sobre vida e obra de Neno Vasco, cujo ponto de culminância se dá agora com a publicação do livro Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista.
A publicação do presente livro faz lembrar de uma peculiaridade física com a qual Neno Vasco nasce, uma que parece antecipatória da sua sensibilidade social. O seu par de olhos, um castanho e outro azul, é bem a metáfora de como foi capaz de enxergar, sem sobreposições e hierarquias, as experiências concretas nos dois lados do Atlântico. Vivência que o dotou de amplitude analítica e entendimento de que a ideologia só podia ser considerada válida se respondesse satisfatoriamente aos objetivos da classe trabalhadora como um todo, onde quer que esta se constituísse como ente organizado. Por força dessa leitura, sua prosa engajada e doutrinária estava longe de prescrever fórmulas ou sugerir sanções, era antes dotada de interpretação criativa das conjunturas pelas quais havia passado. Em suma, o seu internacionalismo era radicalmente plural e, por isso mesmo, capaz de mobilizar e inspirar iniciativas em diferentes partes do mundo.
O presente estudo de Thiago Lemos Silva, não deixa dúvidas sobre a ainda muito desconhecida contribuição de Neno Vasco nas mais diferentes latitudes do Ocidente. Sobre o pouco que se conhece da sua capilaridade, estatura internacional e acolhimento nas mais diversas publicações libertárias e operárias de seu tempo, e ainda depois dele. Ao que tudo indica, e existem fortes indícios para esta hipótese, parece estar longe o dia de encerrarem-se os estudos sobre o impacto da produção de Neno, sua extensão e alcance. Mesmo um simples inventário, sem a pretensão analítica, encontra-se em fase incipiente, circunscrito ainda ao que se tem investigado sobre o autor nas últimas décadas.
No mais, o que é possível experimentar quando aceitamos o desafio de percorrer as páginas que ora posfaciamos é a vertigem diante do vislumbre desse denso e rico espólio deixado por Neno Vasco. Uma produção que, pelo exposto, não pode ser reunida pelo simples somatório de esforços individuais, mas antes pela associação de espíritos tenazes que, a exemplo da própria rede colaborativa pacientemente montada pelo anarquista português, desconsiderem fronteiras, distâncias e dificuldades. Uma tarefa a ser levada adiante por aqueles que insistem em ser a sua “Pátria o Mundo Inteiro”.
Notas:
[1] A capa do livro traz o ano de 1923. Em seu miolo, na segunda página impressa, o ano de referência é o de 1920. É possível que a composição do miolo tenha sido iniciada anos antes de sua publicação.
[2] João C. Marques, valendo-se de informação contida no jornal O Paiz, destaca que a UOCC (Rio de Janeiro), em outubro de 1923, já colocava à venda e emprestava aos seus sócios o Concepção anarquista do sindicalismo. Ver: Marques (2018, p. 69).
[3] Segundo Adelaide Gonçalves e Jorge Silva, o livro de Neno Vasco ganhou uma edição brasileira sob a responsabilidade da UOCC, em 1923. Ver: Gonçalves e Silva (2001, p.118).
[4] O pesquisador Renato Dória salvou do esquecimento essa informação que consta do acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Teriam participado da “célula Neno Vasco” os seguintes militantes: Cyro José da Fraga, ex-integrante do Comitê Nacional; Wilson Caetano Neto, do Comitê Metropolitano e Walter Lisboa Valle, ex-integrante do Comitê Nacional. Para citar apenas os que se encontram na pasta DPS-D1674.
[5] Segundo o site do “Arquivo do Movimento Social Crítico e Alternativo” (MOSCA): O Arquivo Histórico-Social foi depositado na Biblioteca Nacional de Portugal por contrato de 28 de abril de 1980 e, em julho de 1985, foi doado à mesma entidade, passando a integrar o Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, recebendo desde então novas doações. Disponível em: http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/projecto/index.php?option=com_content&view=article&id=28&Itemid=43 (acesso em 31 de outubro de 2022).
Referências:
CORRÊA, Felipe. Ideologia e estratégia: anarquismo, movimentos sociais e poder popular. São Paulo: Faísca, 2011.
BOTELHO, Adriano. Alguns traços biográficos de Neno Vasco. A Idéia. Paris, n. 2, 1974.
GONÇALVES, Adelaide; SILVA, Jorge. Bibliografia libertária: o anarquismo em língua portuguesa. São Paulo: Imaginário, 2001.
GUIMARÃES, Paulo. As Juventudes Libertárias e o problema do movimento anarquista nos anos 40. In: Seminário de História da oposição ao Estado Novo. Setúbal: Universidade Nova de Lisboa, 1992.
LEUENROTH, Edgard Leuenroth. Anarquismo: roteiro de libertação social. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963.
MARQUES, João Carlos. O movimento sindicalista revolucionário brasileiro: interpretações e debates a respeito do tema na imprensa operária do início do séc. XX. In: TEIXEIRA, Cátia (org.). Atas do II Congresso de História do Movimento Operário e dos Movimentos Sociais em Portugal. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa, 2018.
MENEZES, Leila; MENEZES, Lena M. Em “Dezacordo” com a norma: a ortografia simplificada como estratégia anarquista de luta contra o analfabetismo. Vozes em diálogos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2008.
SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário. São Paulo: Intermezzo, 2018.
RODRIGUES, Edgar. Neno Vasco, Emma Goldman, a Revolução Mexicana de 1910 e a tese de Pietro Ferrua. Verve, São Paulo, n. 11, 2007.
RODRIGUES, Edgar. Os Libertários. Rio de Janeiro: VJR, 1993.
SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário em Dois Mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009; reedição: São Paulo: Intermezzo, 2018.
VIEIRA, Alexandre. Figuras gradas do movimento social português. Lisboa: Edições do Autor, 1959.
VASCO, Neno. Concepção anarquista do sindicalismo. Lisboa: Editora de A Batalha, 1920; reedição: Curitiba: Tie Brasil, 2008; reedição: Porto: Afrontamento, 1984.