Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política

A seguir, publicamos a apresentação escrita por Isabel Loureiro para o livro “Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política: uma leitura latino-americana”, de Hernán Ouviña. Essa inspiradora obra sobre Rosa Luxemburgo foi publicada em 2021, a partir de uma ação conjunta da Boitempo e da Fundação Rosa Luxemburgo. O livro pode ser lido na íntegra aqui.

Por Isabel Loureiro

Hernán Ouviña, professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires e militante socialista que conhece como ninguém os movimentos sociais da América Latina, mostra seu talento de educador popular nesta ótima introdução à vida e obra de Rosa Luxemburgo, de grande interesse para a militância de esquerda. Ao levar a sério Walter Benjamin e seu “encontro secreto […] marcado entre as gerações passadas e a nossa”, Hernán volta ao pensamento da revolucionária judia polonesa a partir das questões que mobilizam a militância de esquerda posterior à “onda rosa” na América Latina: rejeição do patriarcalismo e do colonialismo, preservação dos modos de vida das populações originárias, Estado plurinacional, questão socioambiental. Mas ele não ignora o núcleo do pensamento político de Luxemburgo, que gira em torno de problemas como a dialética entre reforma e revolução, entre partido e classe, base e liderança, autonomia das massas, defesa do vínculo indissociável entre democracia e socialismo. Hernán dá outra vida aos conhecidos textos de Rosa, tornando a leitura prazerosa e fonte de novas descobertas. Segue o conselho da própria autora que, cansada da monotonia rotineira da imprensa social-democrata, recomendava que o escritor devia a cada vez se entusiasmar e refletir sobre o tema na sua “plenitude, e assim se encontrariam palavras novas para as coisas velhas e conhecidas, palavras vindas do coração e dirigidas ao coração”[1].

E assim o faz Hernán, tecendo um diálogo instigante de Rosa Luxemburgo com as práticas políticas da América Latina, desvelando traços da influência do pensamento da revolucionária polonesa na região. No Brasil, em particular, sabemos que as ideias de Luxemburgo começaram a ser divulgadas por Mário Pedrosa – fundador da oposição trotskista e nosso maior crítico de artes plásticas – nas páginas do semanário Vanguarda Socialista, editado por ele no Rio de Janeiro de fins de 1945 a meados de 1948. Aí foram publicados alguns dos artigos políticos mais importantes de Rosa Luxemburgo, com cuja obra Mário tivera um primeiro contato em Berlim e Paris no fim da década de 1920. No cenário imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, quando o pensamento de esquerda era dominado pelo stalinismo, a divulgação do ideário socialista democrático, popular e antiburocrático de Luxemburgo tinha o fito de criar uma nova esquerda, humanista e independente, tanto da social-democracia quanto do stalinismo. Nesse intuito ele polemiza incisivamente com a concepção leninista de partido-vanguarda centralizado, formado por um pequeno núcleo de revolucionários profissionais, hierarquicamente separados das grandes massas populares. Contra o que considera o principal responsável pelo definhamento burocrático da Revolução Russa, o partido-vanguarda, ele toma posição pelo partido-classe de Luxemburgo, formado a partir da ação autônoma dos de baixo, tanto na luta cotidiana pela ampliação de direitos quanto para transformar estruturalmente o estado de coisas vigente. Concordando com sua crítica ao aniquilamento das liberdades democráticas pelos bolcheviques, Pedrosa argumenta que a falta de liberdade leva à barbarização da vida pública, o que impede a construção do socialismo e a emancipação social. A via régia rumo ao socialismo só pode ser pavimentada pela ação livre da grande maioria, politicamente formada na luta, e não por decretos de uma vanguarda iluminada que se põe no lugar das massas. Essa é a primeira lição que Pedrosa tira das ideias políticas de Luxemburgo.

Trinta anos mais tarde, no fim da década de 1970, ele publica um livro sobre as ideias econômicas da nossa revolucionária, A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo[2]. Nessa época, já crítico do eurocentrismo e do desenvolvimentismo, desencantado com a arte racionalista e admirador da arte indígena, vê na análise de Luxemburgo das formações sociais pré-capitalistas e do seu aniquilamento pelo rolo compressor do capital uma explicação original do capitalismo histórico como processo global. Concorda com ela que a violência do capital não se restringe às suas origens, ao processo de “acumulação primitiva”, mas que o saque e a destruição, quer da força de trabalho, quer da natureza, são necessidades permanentes da acumulação. Mário Pedrosa, ao se apropriar da face terceiro-mundista do pensamento de Rosa Luxemburgo, intui aquilo que 25 anos depois David Harvey chamará de “acumulação por expropriação”.

Por sua vez, Paul Singer, também herdeiro de Luxemburgo, formou-se politicamente com a leitura de Vanguarda Socialista, na qual aprendeu o nexo indissolúvel entre socialismo e democracia que o acompanhou durante a vida inteira. Leitor de A acumulação do capital, obra magna da revolucionária judia polonesa, Singer reconhece que sua grande contribuição teórica foi ter percebido, contra Marx, que nunca existiu um modo único de produção no mundo, mas vários modos de produção interagindo entre si. O mundo real analisado por ela mostrava formas de artesanato e de pequena agricultura coexistindo com o capitalismo (mas sobretudo sendo destruídas por ele), o que Singer via como exemplo iluminador para a elaboração teórica da economia solidária. Não custa lembrar que Mário Pedrosa e Paul Singer, empenhados em criar um partido socialista de massas, enraizado na democracia interna e que lutasse pelos direitos dos trabalhadores e pela transformação estrutural do arcaísmo brasileiro, fizeram parte do núcleo fundador do Partido dos Trabalhadores (PT). Ainda podemos acrescentar a esses dois casos da recepção brasileira de Rosa Luxemburgo Michael Löwy e Maurício Tragtenberg. O primeiro, para além de adepto do ideário socialista democrático enraizado na autoatividade dos subalternos – ou seja, na soberania popular –, introduziu entre nós uma leitura muito frutífera da economia política da nossa revolucionária. Argumenta que Rosa, com sua admiração pelas antigas formações sociais não capitalistas e sua rejeição da violência da modernização capitalista como um capítulo necessário no caminho do socialismo, aposta numa história aberta à ação humana, dando elementos para criticar a ideia determinista do progresso linear, típica do positivismo. No pensamento de Rosa Luxemburgo já encontraríamos o germe de uma crítica da ideologia do progresso que seria desenvolvida posteriormente por Walter Benjamin. Já Maurício Tragtenberg, com suas análises ironicamente demolidoras dos fenômenos burocráticos, inclusive no campo da esquerda, via em Luxemburgo a mãe das ideias libertárias e antiburocráticas.

Não resta dúvida de que o livro de Hernán Ouviña entronca com essa história aqui esquematicamente delineada. Com uma leitura renovada do pensamento da revolucionária polonesa, ele dá voz a uma nova geração de militantes que se forjou na América Latina nas lutas contra o neoliberalismo, mas também na crítica aos limites dos chamados “governos progressistas”, acrescentando mais um capítulo à recepção de Rosa Luxemburgo entre nós.


[1] LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos III (Cartas). São Paulo, Editora Unesp/Fundação Rosa Luxemburgo, 2017, p. 35.

[2] PEDROSA, Mário. A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

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