Anarcoveganismo: os animais e a revolução

Anarquismo e veganismo, dois movimentos político-sociais que possuem demandas inseparáveis.

O anarquismo e o veganismo são ideologias que têm mais em comum do que parece. Levando em conta o caráter anti-hierárquico do anarquismo, podemos visualizar uma crítica deste ao especismo, prática que hierarquiza os seres vivos colocando os seres humanos na posição de dominantes. Da mesma forma, quando levamos em conta a vertente vegana interseccional, ligamos o veganismo a outras lutas sociais que batalham contra as diversas opressões da sociedade – capitalismo, estatismo, sexismo, racismo, homofobia, etarismo etc, assim como faz o anarquismo.

Nesse sentido, parte do anarquismo segue mostrando para a sociedade a importância de lutar contra todos os sistemas de dominação, afirmando, como Mikhail Bakunin, que nós só seremos “verdadeiramente livres quando todos os que [nos] cercam […], forem livres” (BAKUNIN, 2002, p.47).1BAKUNIN, Mikhail. “O Império Cnuto-Germânico”. In: Daniel Guérin (org.) Textos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 2002.​​​​​​​ Entendendo esses livres não apenas como humanos, mas todos os seres que não se sentem libertos. Para os da esquerda e libertários, mostram que apenas uma revolução econômica não resolverá esses problemas, como na Revolução Russa, mas também, mostram aos liberais e capitalistas veganos e ONGs legalistas que dentro do capitalismo e do Estado Nacional, será impossível um fim dos sistemas de dominação, a redenção animal e humana. (SANTOS, 2020)

Existe uma intensa ligação do anarquismo com o veganismo e o antiespecismo desde suas origens, mesmo antes da existência desses termos. Logo no início da tradição anarquista, militantes libertários pensavam sobre a relação de dominação do meio ambiente pelo ser humano, a destruição de áreas naturais por capitalistas e latifundiários e a tortura e exploração de animais, humanos e não-humanos, nesse processo.

Exemplo desse pensamento logo no início do movimento anarquista é o do militante da Primeira Internacional dos Trabalhadores, Éliseé Reclus, que, ainda no século XIX, defendia que o capitalismo industrial havia aumentado a distância entre os animais humanos e os animais não-humanos, expandindo potencialmente a coisificação e a objetificação destes.

Outro caso é o de Maria Lacerda de Moura, anarquista brasileira nascida em 1887, que também se declarava vegetariana e fazia associação entre anarquismo, vegetarianismo e feminismo, demonstrando uma posição antiespecista, mesmo antes desse termo ser cunhado.

O escritor e militante estadunidense Murray Bookchin, nascido em 1921, considerava o meio ambiente incluso em uma postura de organizações sociais e revolucionárias – postura que ele chamava de ecologia social. Tecendo sua crítica ao Estado, ele afirmava que o povo era afastado das tomadas de decisão, e estas não envolviam apenas animais humanos, mas todos os demais animais. Para ele, a partir da democracia libertária, seria possível compartilharmos a esfera da vida junto a todos os demais seres vivos e nos relacionarmos de forma partícipe do ecossistema.

A revolução Curda, em Rojava, uma das mais importantes do século XXI, defende a autogestão por meio da ecologia social e da igualdade de gênero, classe, sexualidade e raça, além da vivência harmônica e equilibrada entre mulheres, homens, demais animais e meio ambiente.

Do ponto de vista do anarquismo insurrecional, foi fundado, em 1973, o Band of Mercy, na Inglaterra. Esse grupo se destacava pelos ataques a empresas de peles, depredação de abatedouros, propagandas contra a crueldade animal em testes e na alimentação, entre outras táticas. Em 1976, foi fundada uma célula mundial com diversos focos chamada Animal Liberation Front. A ALF pregou o uso de violência contra objetos e expropriações para salvar animais como propaganda contra o especismo. Apesar da violência empregada, eles se comprometem em “tomar todas as precauções necessárias para não causar danos a animais humanos e não humanos”. Apesar disso, a ALF é considerada terrorista em diversos países, o que demonstra que o sistema econômico e político vigente é especista e que uma proposta legalista não colocará fim ao especismo.

Os debates ambientalista, vegano, antiespecista e de libertação animal também tiveram respaldos no Brasil contemporâneo, com a Confederação Operária Brasileira, o Centro de Cultura Social, a Biblioteca Terra Livre, a Confederação Anarquista Brasileira, entre outras.

Sou vegano porque tenho compaixão pelos animais; eu os vejo como seres possuidores de valor, não muito diferentes dos humanos. Sou anarquista porque tenho a mesma compaixão pelos seres humanos e porque me recuso a aceitar perspectivas comprometidas, estratégias de meia-boca e objetivos esgotados. Como radical, minha abordagem à libertação animal e humana é sem compromisso: liberdade total para todos, ou nada. (DOMINICK, 2019, p. 11.)

Os vínculos entre anarquismo e veganismo ganharam contornos mais explícitos em 1995, quando o ativista estadunidense Brian A. Dominick publicou o texto Libertação Animal e Revolução Social: uma perspectiva vegana sobre o anarquismo ou uma perspectiva anarquista sobre o veganismo. Nessa obra, o autor expõe a necessidade da intersecção entre as lutas anarquista e vegana.

O autor chama de establishment as instituições que, segundo ele, administram nossas vidas: o governo, a família, o casamento, a igreja, as corporações, a escola etc. Para ele, esse establishment é responsável por perpetuar o poder de uma minoria relativa através de diversas formas de opressão – classismo, estatismo, sexismo, homofobia, patriarcado, racismo, etarismo e especismo – e nós somos produtos dessas instituições, na medida em que somos socialmente projetados para promover a opressão dentro e entre nós.

Para o autor, os termos radicalismo e veganismo foram cooptados por liberais. Segundo ele, o radicalismo procura a raiz de um problema para que possa encontrar a solução, não se limitando a reformas e concessões. O veganismo, ainda segundo Dominick, é a compreensão radical da opressão animal. É um estilo de vida informado e politizado.

Os vegetarianos liberais, de acordo com o autor, não enxergam validade na libertação humana ou dão menos importância a ela. Demonstram ignorância sobre a conexão entre o capitalismo e a opressão animal.

Para Dominick, há a necessidade de uma revolução social. A indústria da carne só será destruída se o capitalismo de mercado for destruído.

O autor cita alguns fatores sociais que incentivam a exploração animal: a econômica, com a dependência pelo lucro; a religião – nesse caso ele cita especificamente o cristianismo, que acredita no “direito divino” de usar os animais para nossas necessidades, mesmo já havendo a superação de qualquer necessidade por eles; e a vivissecção2 Ato de dissecar um animal vivo com o propósito de realizar estudos de natureza anatomo-fisiológica, com o argumento do desenvolvimento da ciência

Dominick faz comparações entre o especismo e outras formas de opressão. Para ele, existe uma profunda conexão entre o veganismo e o feminismo. Além disso, o especismo e o racismo são construídos através da mesma relação entre opressor e oprimido.

Como Spiegel ilustra, o tratamento de não brancos por brancos tem sido historicamente surpreendentemente semelhante ao de não humanos por humanos. Decidir que uma opressão é válida e a outra não é limitar conscientemente a compreensão do mundo; é envolver-se na ignorância voluntária, mais frequentemente do que não por conveniência pessoal. “Uma causa de cada vez”, diz o pensador monista3Monista é aquele que atribui unidade ou singularidade a um conceito. Que defende a unidade da realidade como um todo ou a existência de um único tipo de substância ontológica, como a identidade entre mente e corpo por oposição ao dualismo ou ao pluralismo, à afirmação de realidades separadas​​​​, como se essas dinâmicas inter-relacionadas pudessem ser esterilizadas e extraídas da relação umas com as outras. (DOMINICK, 2019, p. 23.)

Dominick ainda relaciona o especismo ao estatismo. Segundo ele, a lei é anti-animal. Os governos subsidiam as indústrias da carne, dos laticínios e da vivissecção, além de fazerem uso militar de animais não-humanos. Mas, para ele, a proibição social do consumo de carne só causaria mais problemas, já que a raiz da situação é o desejo socialmente criado e reforçado de produzir e consumir o que não precisamos.

De acordo com a obra, a raiz da opressão está na alienação. Para o autor, para que não participemos dessa opressão, os humanos devem se manter alienados da lógica simples que existe atrás do veganismo​​​​​​​. É criada, então, uma dicotomia nós-eles, onde “nós” somos supremos e privilegiados, não cabendo o mesmo privilégio a “eles”.

Como componente essencial para a perpetuação da opressão, toda alienação deve ser destruída. Enquanto pudermos ignorar o sofrimento no matadouro e no laboratório do vivissetor, podemos ignorar as condições no interior do Terceiro Mundo, no gueto urbano, na casa abusiva, na sala de aula autoritária e assim por diante. A capacidade de ignorar quaisquer opressões é a capacidade de ignorar quaisquer outras opressões. (DOMINICK, 2019, p. 35.)

É urgente que o anarquismo considere o movimento pelos direitos dos animais não-humanos como legítimo e parte integrante de seus princípios, já que muitas das opressões sociais estão direta ou indiretamente ligadas à indústria da carne. Ao mesmo tempo, o movimento vegano precisa se desfazer da cooptação feita pelo capitalismo, precisa se politizar, perceber que a luta animalista deve caminhar com outras lutas de emancipação social e entender que, por trás da exploração animal, da destruição do meio ambiente e da escravização dos corpos humanos através da alimentação, estão o sistema capitalista e o Estado burguês.

REFRÊNCIAS

​​​​​​​DOMINICK, Brian A. Libertação Animal e Revolução Social: uma perspectiva vegana do anarquismo ou uma perspectiva anarquista do veganismo. Cachoeira do Sul: Monstro dos Mares, 2014. 40 p.

SANTOS, Kauan Willian dos (org.). Anarquismo e antiespecismo: ação direta e ecologia social nos bastidores do resgate dos cães beagles em são paulo em 2013. In: MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos (org.). Libertação Animal, Libertação Humana: veganismo, política e conexões no brasil. Juiz de Fora: Editora Garcia, 2020. p. 19.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *