Teratologia. É assim que Perry Anderson denomina o estudo de figuras políticas como Bolsonaro, Trump, Le Pen, Salvini, Orbán: em analogia com o estudo das monstruosidades. Com uma boa dose de humor satírico e a seriedade de quem tem décadas de pesquisas tendo o materialismo histórico como método, o autor oferece um rico arsenal para compreender as trincheiras da crise que assola o Brasil desde, pelo menos, 2014. Entretanto, por se tratar de uma compilação de seis textos, temos um panorama mais amplo, que abarca a história política do país desde a redemocratização até meados de 2019, quando o governo Bolsonaro já se revelava uma catástrofe [1].
Perry Anderson é um historiador marxista britânico que ficou conhecido por publicar obras como Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista. Ele também é editor da New Left Review, revista em que polemizou com Edward P. Thompson a respeito das origens da crise pela qual passava a Inglaterra nos anos 1960. Naquele debate, Anderson adotou uma perspectiva de análise mais estrutural, enquanto Thompson notabilizou-se por considerar a agência histórica como elemento transformador da sociedade. Aquela abordagem estrutural também está presente em Brasil à parte, obra traduzida para o português e publicada pela Editora Boitempo, em 2020. Especificamente nesse livro, contudo, o velho Anderson dá margens amplas às imprevisibilidades inerentes à política. Mas qual a relevância do olhar de um historiador estrangeiro sobre este Brasil cujas amarguras experimentamos em primeira mão?
A esse respeito, valoriza a obra o olhar mais distante, que lança mão de comparações e insere o Brasil no contexto latino-americano sem fugir das “proezas” políticas que singularizam a experiência brasileira. O poder de síntese, algo necessário para quem quer fazer análises de conjuntura sem se perder na tormenta das crises ininterruptas, é outro elemento valioso a ser destacado na obra. Em função disso, Brasil à parte se caracteriza como uma obra especialmente útil aos camaradas que quiserem “refrescar a memória” e organizar as suas perspectivas da história recente do país antes de entrar nas brigas que ocorrerão em 2022.
As análises de Anderson foram produzidas ao longo de mais de duas décadas e trazem visões que vão se sobrepondo. Elas revelam o amadurecimento do autor quanto ao entendimento da política brasileira, na medida em que um texto se sucede a outro e traz balanços a respeito das expectativas e respostas a perguntas levantadas no anterior. Alguns aspectos se destacam na obra. A saber, a visão crítica a respeito da atuação de Fernando Henrique Cardoso e seus congêneres, uma leitura da ascensão e da derrocada do petismo e a descrição incisiva (que não deixa ninguém ileso) das sucessivas intrigas do poder ligadas ao golpe de 2016.
Ao longo da narrativa, FHC aparece gradativamente como um intelectual que, tomado por suas próprias ambições e vaidades, migra de uma questionável posição de centro-esquerda para um neoliberalismo polido, corrupto e fisiológico, que Perry Anderson identifica como uma forma de “transformismo”. Esse termo, originalmente concebido para descrever a política italiana, denomina o processo pelo qual forças políticas inicialmente radicais vão sendo cooptadas e absorvidas pelas forças conservadoras – até um ponto em que acabam servindo àquilo que surgiram dizendo combater. A fórmula parece ser uma das constantes na interpretação do autor, que também aponta a presença de transformismos na era petista e desmascara a suposta “nova política” (frequentemente anunciada por liberais e fascistas), mostrando ser ela um óbvio verniz do que há de mais retrógrado e sujo no Brasil.
No que tange ao PT, Anderson faz uma leitura crítica das obras de autores como André Singer (notavelmente Os sentidos do lulismo e O lulismo em crise) e Francisco de Oliveira, bem como analisa meios e resultados práticos das políticas adotadas e dos pactos consumados. Por um lado, ressaltando as conquistas dos governos de Lula, Anderson enfatiza, por exemplo, o papel firme e decisivo do Estado para gerir momentos de instabilidade: ao passar pela crise de 2008, o governo atuou aumentando a transferência de renda, reduzindo o depósito compulsório dos bancos, estimulando o consumo das famílias trabalhadoras e aumentando os investimentos públicos. Foi uma política orquestrada e vigorosa, que transformou o tsunami da crise em uma “marolinha” no Brasil. Algo bem diferente do que observamos durante a sabotagem do combate à pandemia feita pelo governo Bolsonaro, que fez com que o Brasil sofresse muito mais que outros países. Por outro lado, Anderson não poupa os governos de Lula da crítica à desmobilização que promoveram: em vez de ser marcada pela combatividade, a era petista se caracteriza pela ausência de engajamento e pela recusa de conflitos. Para ele, o PT, desconectando-se de suas bases na classe trabalhadora, provocou uma hegemonia às avessas, na qual “os dominados inverteram a fórmula, obtendo o consentimento dos dominadores para liderar a sociedade e ratificando, ao mesmo tempo, as estruturas de sua própria exploração” (p. 84).
A análise feita pelo autor das estruturas socioeconômicas também se faz importante para a compreensão do plano de fundo das sucessivas crises que, muitas vezes, foram apresentadas como meramente políticas. Ao referir-se à crise do pacto de classes costurado pelo PT, Brasil à parte problematiza aspectos econômicos de médio prazo, como o crescimento moderado e a melhora nos padrões de vida sem correspondente industrialização, fenômeno que, no nosso caso, provoca uma acentuação da dependência. Isso ocorre porque o foco da acumulação capitalista passa da produção industrial para as transações financeiras e para a extração de recursos naturais. Ou seja, ao mesmo tempo, fomenta-se uma burguesia rentista parasitária e deteriora-se o ambiente e a capacidade de desenvolvimento, exportando-se mercadorias de baixo valor agregado. Essa interpretação, baseada na obra de Francisco de Oliveira, deixa clara a desvantagem de um modelo econômico que, embora entregue algumas migalhas à população trabalhadora, é fundamentalmente voltado para bancos, mineradoras e latifundiários
Além disso, podemos sublinhar a maneira como Anderson procura construir sua narrativa a respeito do golpe de 2016. Alternando entre fazer avaliações a respeito da derrocada do governo Dilma e compor uma crônica dos acontecimentos, o autor não deixa de traçar comparações entre Dilma e Lula e delinear as frentes de atuação golpista. Cabe a Anderson, aqui, o mérito de pinçar o essencial da interpretação de André Singer sobre a queda de Dilma: a fórmula “Lula verga, mas não quebra; já Dilma quebra, mas não verga”, usada pelo historiador britânico, descreve bem a interpretação de Singer, bem como a impressão generalizada que muitas pessoas à esquerda tiveram do processo. Mas Anderson considera isso questionável.
Note-se: a fórmula é uma referência ao que seria um dos supostos dois erros fatais de Dilma, isto é, não aceitar a chantagem de Eduardo Cunha, que, investigado, ofereceu um pacto ao governo. Na proposta, Cunha protegeria Dilma do impeachment, usando sua influência enquanto presidente da Câmara, e a bancada do PT protegeria ele, Cunha, das acusações que sofria por seus esquemas corruptos, por meio dos votos de seus parlamentares. Dilma não cedeu à chantagem. O outro erro fatal, na visão de Singer (e de muitos membros do PT) era o de Dilma não ter dado lugar à volta de Lula em 2014. Nosso autor argumenta que essa visão é limitada, pois atribui a Dilma uma probidade republicana excessiva. Afinal, lembra ele, Dilma teve próximos de si ninguém menos que Antonio Palocci e João Santana. Outro ponto é que ter deixado Lula concorrer às eleições de 2014 provavelmente despejaria no colo do ex-Presidente crises agudas. Isso porque o ciclo de valorização das commodities havia passado, todos os índices econômicos apontavam para baixo e Lula sempre foi uma figura bem mais vulnerável a acusações e injúrias do que Dilma. Assim, Anderson encaminha sua análise considerando que Dilma, ainda que não estivesse totalmente livre de envolvimentos duvidosos, agiu corretamente, não só do ponto de vista moral, mas também do prático: caso cedesse, ficaria à mercê de Cunha, em caso de qualquer pedido de impeachment. O benefício de um pacto com o evangélico e golpista-mor seria muito fugaz. Já o preço, em termos de credibilidade, seria devastador. Essa fábula, ainda que termine em desgraça, deixa a lição de que nem toda opção pragmática é válida. Às vezes, é melhor cair de pé.
A narração dos eventos que se seguiram à queda de Dilma não deixa de macular a imagem de boa parte da “classe política”. Por exemplo, como não deixar de notar que as acusações contra Cunha foram reveladas em 2015 e que, portanto, vários agentes podem ter sua atuação questionada no processo do golpe? Notavelmente, o STF evitou tocar nos autos contra Cunha por mais de seis meses, para que ele fizesse o golpe andar na Câmara. Depois, podemos notar que a enorme quantidade de parlamentares que votaram pelo impeachment sabiam que Cunha, o condutor, era corrupto. Isso inclui, por exemplo, Jair Bolsonaro, que enalteceu o colega publicamente em seu voto. Envolve, também, todas aquelas lideranças que entraram para a elucidativa foto com Cunha, onde aparecem representados elementos golpistas como o MBL, o bolsonarismo, o PP, o DEM e o PSDB [2]. Temer, por sua vez, não saiu ileso da crítica do autor, que lembrou o fatídico episódio em que a Câmara o livrou de qualquer investigação, mesmo tendo um de seus assessores sido filmado com uma mala cheia de dinheiro que seria usado para comprar o até hoje gritante silêncio de… Eduardo Cunha. O dinheiro vinha de um emissário de Joesley Batista, com quem Temer conversou e foi gravado discutindo sobre como “manter isso” (Cunha calado).
Bolsonaro, por sua vez, tem o início de seu governo analisado por Anderson desmontando pilares de sua sustentação política. O autor demonstra as corruptelas da Lavajato e evidencia como a origem de Bolsonaro só foi possível em um Brasil de medo e insegurança física e existencial (relacionando sua ascensão ao projeto de poder neopentecostal e ao seu envolvimento com as milícias). Além disso, ressalta como as classes dominantes se juntaram para apoiar a candidatura de Jair e desconstrói a imagem dos militares, considerados na obra como o principal vetor da força política do governo, já que foram fundamentais para tirar Lula do páreo – mediante ameaça de intervenção.
Para mencionar uma falta: a análise de Perry Anderson, que é de antes da pandemia, praticamente descarta a caracterização de Bolsonaro como fascista. Ele não havia visto a capacidade do presidente de promover uma insistente sabotagem ao combate à disseminação da Covid-19, friamente provocando a morte de mais de meio milhão de pessoas.
O historiador alerta, contudo, para a dúvida que paira a respeito de um eventual impeachment (ou pairava, já que, em 2022, poucos ainda levantam essa bandeira, apesar das dezenas de pedidos ignorados por Maia e Lira). A chegada de Mourão à Presidência poderia aproximar ainda mais a analogia entre os golpes de 1964 e 2016. Monstros vários e variados à parte, lanço-me a considerar que o risco maior não é exatamente assunto de teratologia, mas uma sintomática adesão, sob pretextos eleitoreiros e de governabilidade, àquele transformismo de que falava Anderson. Fica, então, a pergunta: o que será combatido e o que será “assimilado” no legado podre e triste de Jair Bolsonaro e do golpe que o gestou?
Notas:
[1] O subtítulo parece enganar: apesar de dizer “1964-2019”, os textos têm clara concentração no período posterior à redemocratização, mas o autor não esconde como a democracia estende suas raízes nos pactos do período ditatorial. Na narrativa de Anderson, filhotes da ditadura pululam em seus momentos mais comprometedores.
[2] Para ficarmos nos mais notáveis: do MBL, Kim Kataguiri e militantes; do PP, Odelmo Leão; do bolsonarismo, Eduardo e Jair Bolsonaro; do DEM, Alberto Fraga; do PSDB, Carlos Sampaio.